Amateurs!: Alfred Molina estrela caricatura do estado atual da crítica e da arte
Quem é o verdadeiro alvo do esquete “Crítico de Teatro Infantil”, do Funny or Die?
Não é preciso Freud para saber que toda piada contém uma dose de verdade – se letal ou não, depende do gole. E a verdade que o esquete “Children’s Theater Critic” oferece é precisa. Pelo ângulo oblíquo do humor, o estado atual da crítica de arte encontra um nele um retrato dos mais interessantes. Ou melhor, uma caricatura.
Produzido pelo canal Funny or Die, o esquete apresenta Alfred Molina como Arthur H. Cartwright, um implacável crítico de teatro – infantil. Não é novo: está no YouTube desde 2012, o que o torna um fóssil do período cambriano, segundo o calendário e o relógio da internet. Se nessa dúzia de anos você ainda não o viu, corre lá e volta. Garanto que não vai perder a viagem.
Difícil decidir a melhor parte do vídeo. A performance de Molina é forte concorrente. Cabeça raspada, olhar intenso e voz poderosa saindo de um blazer elegante, ele assiste a montagens de crianças fofas e não se deixa impressionar. Lança petardos verbais que ora fazem rir de modo aberto (– “É o meu filho ali no palco”; “– Sinto muito”), ora nos constrangem, provocando um riso indireto pela infantilidade dos seus “achados” (“You’re a bad play, Charlie Frown. See? I twisted a little there”). Molina se entrega ao papel com intensidade, sem aparentar um resquício de autoconsciência. Faz sentido: esse crítico de teatro infantil fala sério. Se o palco é sagrado, ele é o inquisidor: amateurs!
Como toda boa piada, o esquete parte de uma incongruência. Um curto-circuito lógico-social. Fala-se de teatro, ou seja, uma forma de Arte com uma bagagem cultural milenar, cuja tradição riquíssima inclui ápices da potencialidade humana – Ésquilo, Sófocles, Shakespeare, Ibsen, Nelson Rodrigues. Alto gabarito, alta exigência.
Ao mesmo tempo, fala-se de crianças, que ainda estão aprendendo a soletrar Shakipir, Shake’s Pear, Sheik’s Pete. Do choque entre matéria e forma, entre as expectativas de exigência e de diversão (“nem por um momento acreditei que você fosse uma árvore!”), o esquete extrai a sua energia particular. E o nosso riso.
A premissa se desenvolve até as últimas consequências. Inclui outros agentes no ramo do teatro: a professora de jardim de infância que só assiste peças recomendadas pelo crítico; o ex-ator mirim que, via crítica impiedosa, descobre sua vocação de faxineiro do palco; um ator mirim mesmo, na forma de uma criança que reclama da crueldade e recebe uma palestrinha na orelha. A incongruência vai além do seu limite, chegando à outra fronteira: mau humor se torna amor quando o crítico assiste a uma montagem de The Hungry Caterpillar e vai às lágrimas. Aplaude embevecido. Saca o arsenal de platitudes, capricha no maquiagem verbal (“uma produção cheia de pathos, com um wit pós-moderno e uma ambivalência devastadora”) e vai elogiar os atores. Honraram o espírito de Brecht! (Será Brecht o pai do menino da 5ª B?). Mas tem que manter a pose; no fim do elogio, diz a uma criança: menos você, que estava horrível. Gratuito, do nada.
A seriedade de Alfred Molina, a discrepância entre sua investida crítica e as expectativas de seu objeto, a miniaturização – quase literal – dos artistas. Talvez eu esteja levando a sério demais a ideia de explicar a piada matando-a. Mas esses elementos me parecem uma forma de comentário sobre o estado atual da arte, seja pelo ângulo do crítico, seja pelo do artista. São várias as perguntas que, contrabandeadas pelo riso, o esquete apresenta:
O que acontece quando os críticos descem dos monumentos da Arte, dos monstros sagrados, dos titãs da cultura (sempre definidos a posteriori, post-mortem, o que é bem mais confortável), e aplicam toda aquela bagagem a objetos despretensiosos, ou mesmo ridículos?
Se pode haver um circuito artístico de produção e recepção independente da crítica, qual é o papel dela? E se esse circuito se move pelas relações de afeto (bom ou ruim) e não se importa mais – ou nunca se importou – com qualidade, o que a crítica deve fazer?
Não estará cada vez mais comum uma sensibilidade infantil por parte dos artistas, choramingando contra comentários críticos, em vez de tomá-los com ironia, altivez ou qualquer outra opção menos infantil?
E o público? Estará despretensioso, como se exigiria no caso de crianças, ou na verdade já se acomodou na condescendência?
Quem faz o papel de ridículo nessa história?
Como boa piada, o esquete apenas lança as perguntas e nos deixa imaginando se as respostas são para rir ou chorar. De um jeito ou de outro, saímos ganhando, porque podemos revisitar mil e uma vezes Alfred Molina embasbacado, diante de um menininho que em plena performance acena para a família e provoca o grito indignado do crítico: Como você se atrever, senhor? A quarta parede não significa nada para você?
Se você frequenta a newsletter, já sabe que humor — com graça ou desgraça — está sempre no nosso cardápio. Tem mais alguns exemplos neste ensaio sobre o lado homérico de Trovão Tropical; neste comentário sobre os dedos de salsicha em Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo; e, mais recentemente, na “humorbidez” de um ótimo disco de Fernando Pellon. Tem coisa séria também, aqui e no blog.
E vai ter muito mais. Talvez não tão cedo, mas com certeza vem aí — é mais forte que eu. Se você se inscrever, já garante que não perde:
Desconhecia esse vídeo. Molina e o roteiro são muito bons. Valeu por me apresentar essa pérola.