Trovão Tropical: 15 anos de uma comédia surpreendentemente homérica
"Canta, ó Musa, as bobagens de Ben Stiller, o Speedman, / que tantos risos trouxe aos espectadores / e quase ajudou o colega / a ganhar um Oscar de Ator Coadjuvante"
“Você está brincando, né? Que ideia é essa de comparar Trovão Tropical, um filme besta, ridículo, com a obra do Homero, Ilíada, Odisseia? Piada, né?”
Sim, é uma piada. E séria. Uma piada levada a sério.
Uma piada que, como no texto sobre Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo, nasce com uma imagem.
Lá pelo meio de Trovão Tropical, perdido com os colegas atores numa selva no Sudeste Asiático, já sem as suas “jujubas” e na fissura da abstinência, o comediante Jeff Portnoy (Jack Black) avisa aos companheiros que não vai resistir. Se quiserem resgatar Tugg Speedman (Ben Stiller) dos traficantes de heroína que o capturaram, os atores vão ter de amarrar Portnoy a uma árvore e deixá-lo ali até que esteja limpo. Devem ignorar os apelos cada vez mais desesperados para que o soltem – ele vai mentir, xingar, se humilhar; vai fazer qualquer coisa por mais uma dose. Depois talvez melhore.
Pro bem ou pro mal, com mais ou menos paradas no caminho, qualquer história dos últimos 2800 anos pode ser remetida a Homero, mas aqui o paralelo está nítido. A cena evoca o momento da Odisseia em que Ulisses enfrenta as sereias. Elas atraíam os marinheiros para a morte, e o herói grego é curioso demais – como que não vai ouvi-las? Instruído pela feiticeira Circe, Ulisses manda sua tripulação tapar os ouvidos com cera e amarrá-lo ao mastro com o máximo de firmeza. Assim eles atravessam o perigo.
É muita viagem minha ver outros pontos de contato?
Podia ser apenas uma referência pontual. Mas a narrativa do filme gira em torno de outro grande tema da Odisseia: a volta para casa. Speedman e Portnoy, junto com Kirk Lazarus (Robert Downey Jr.), Alpa Chino (Brandon T. Jackson) e Kevin Sandusky (Jay Baruchel), precisam sobreviver à filmagem de Trovão Tropical, um romance sobre a Guerra do Vietnã. A produção estourou o orçamento, tudo está degringolando, e numa tentativa de salvar o filme com uma linguagem documental, o diretor os jogou no meio da selva (e morreu ao pisar numa mina acidentalmente).
Já seria difícil a jornada de volta para o set de filmagem, e de lá para os EUA, mas ainda se deparam com a Dragão Flamejante – produtores e traficantes de heroína, com armamento pesado. A seu modo, ela é uma espécie de versão moderna de dois obstáculos da Odisseia: tem a força bruta e violenta de Polifemo, o ciclope que aprisiona e amaldiçoa Ulisses, mas também evoca os lotófagos, pelo paralelo entre o transe dessas personagens gregas e o estupor da heroína.
Um terceiro paralelo, para afastar as chances de mera coincidência.
Speedman e Lazarus enfrentam uma severa crise de identidade quando Speedman dá uma de Marlon Brando em Apocalypse Now e confronta o fundo falso da personalidade de Lazarus, ator adepto do “Método”, do mergulho na psicologia das personagens. Conforme se despe dos adereços, expondo o ridículo do seu blackface, Lazarus diz: “Eu acho que sou ninguém”.
Ulisses se apresenta a Polifemo dizendo chamar-se “Ninguém”. E o risco da perda da identidade – do esquecimento, de deixar para trás quem se era – atravessa toda a jornada da Odisseia, segundo o ensaio de Italo Calvino sobre o livro, em Por que ler os clássicos – lotófagos, ciclopes, sereias, Circe transformando os marinheiros em porcos, o amor da deusa Calipso, todos querem fazer Ulisses se perder na viagem de volta. Esquecer seu posto como rei de Ítaca, marido de Penélope e pai de Telêmaco. Esquecer quem é.
Um breve desvio
(Talvez desse para acrescentar um paralelo com a Ilíada também. Trovão Tropical também conta a história de uma guerra, ainda que indireta e satiricamente; Speedman e Lazarus duelam por protagonismo, quase como Aquiles e Heitor; Speedman e seu agente Rick Peck [Matthew McConaughey] mostram uma amizade forte, tipo a de Aquiles e Pátroclo, embora menos homoerótica. Mas aqui sim acho que cabe a ressalva – não há história envolvendo guerra, do Ocidente para cá, que fuja à sombra da Ilíada. Digamos que o filme pincela algumas referências, mas não os explora tanto.)
OK, Trovão Tropical e Odisseia, digamos que me convenceu. E daí?
A parte mais interessante no jogo de correspondências entre duas obras tão distantes, tão distintas, é encontrar as adaptações. O que as narrativas têm comum, considerando função ou sentido, mas resolvem cada uma à sua maneira, segundo suas próprias coordenadas.
Em Homero, por exemplo, um dos recursos fundamentais é a alternância entre a escala humana e a sobre-humana. Principalmente na Ilíada, onde o narrador homérico passeia pelo campo de batalha em Troia e no Olimpo – às vezes eles se misturam, com os deuses no meio dos guerreiros. Na Odisseia, a porosidade entre o plano dos deuses e o dos mortais diminui, mas não desaparece. Para castigar o insolente Ulisses, Polifemo invoca seu pai Posêidon, que cumpre a tarefa com gosto; Atena ajuda o herói grego a liquidar os pretendentes de Penélope; a deusa Calipso mantém Ulisses por anos ao seu lado, como seu amante, prometendo-lhe a imortalidade e a eterna juventude. Será que Trovão Tropical tem alguma coisa que corresponda a esse trânsito? Forças superiores que moldam o destino dos heróis?
Creio que sim. Em dois casos.
O primeiro, inscrito na narrativa, explícito, está na alternância entre o set e os escritórios do estúdio, com os executivos. Como de um Olimpo secular, do alto de montanhas de dinheiro, Les Grossman (Tom Cruise) faz uma versão cômica, calva e de braços cabeludos de um Zeus irascível, que despacha seu assistente (Bill Hader), espécie de Hermes, para conferir o andamento da filmagem. Assim como Zeus avalia se os heróis foram longe demais ou não, Grossman julga, no ar condicionado do estúdio, se é melhor resgatar Speedman ou então deixar que ele morra para depois recolher o dinheiro do seguro. Uma coisa é o mundo grego; outra, o da mercadoria.
Extrapolando um pouco – como se comparar Trovão Tropical à Odisseia não fosse suficiente –, eu apontaria para outro caso que corresponderia no filme às forças superiores moldando o destino dos heróis na epopeia.
O público.
Ele aparece de modo implícito, como uma sombra, identificável pela forma do filme. Pela metalinguagem.
Repare que Trovão Tropical começa com uma série de trailers e propagandas, os projetos anteriores das personagens: Tugg Speedman em Scorcher, Jeff Portnoy em The Fatties, Kirk Lazarus em Satan’s Alley. E se encerra com a cerimônia do Oscar em que Trovão Tropical, o filme-dentro-do-filme, sai vitorioso – Grossman desliga a TV onde a assistia, junto com seu assistente. As pontas da história criam um efeito de espelhamento: há o filme, o filme-dentro-do-filme, e o público, que conecta um ao outro, fator em comum entre o “dentro” e o “fora” da história.
Mais do que o estúdio e seus executivos, são os arbítrios do público que fazem a fortuna das personagens, para o bem e para o mal. Seja no sucesso de bilheteria da franquia Scorcher, seja no fracasso de Simple Jack, Speedman está à mercê do público. Lazarus tem um nicho, os filmes de Oscar, que busca agradar uma fatia específica do público, mais próxima da crítica. Portnoy se sente preso ao papel caricato de suas comédias. Dependem do dinheiro para a produção do filme, Grossman tem a chave do cofre, mas não é ele quem o enche. Se Speedman ainda movesse multidões, valeria mais vivo do que morto, afinal.
Nesse sentido, o paralelo Grossman/Zeus também tem respaldo em Homero: na Ilíada, o deus dos boys-lixo cogita impedir a morte certa de seu filho Sárpedon, definida pelo destino. Mas é constrangido a aceitá-la. Há forças que nem Zeus pode contrariar. Ele não faz o destino, assim como o estúdio não faz o público. São instrumentos deles.
Se a hipótese fizer sentido, há uma série de implicações que se pode tirar da substituição de uma força sobre-humana, fora do alcance inclusive dos deuses e regente da vida dos mortais, no caso de Homero, por uma força demasiadamente humana, coletiva e insondável, os mortais regendo a própria vida e ainda assim, paradoxalmente, sem controle dela. Mas isso seria assunto para outro texto e nos levaria longe. Mais longe que Ítaca, mais longe que o set de filmagem de Trovão Tropical.
Enquanto isso, cesse tudo o que a Musa Antiga canta / que outro valor mais bobo se alevanta.
Este texto tem um agradecimento especial: à Keryma. Ela é que sacou a semelhança das cenas, a fagulha inicial, enquanto eu me empolgava falando dos ardis de Ulisses, da Odisseia, da mitologia grega, de algo assim. (Ela tem uma paciência infinita.) Se ainda não conhece o trabalho da Keryma, eu recomendo muito, e sempre: tem no site dela e no Instagram.
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Pode mandar o texto também para aquele pessoal que você sabe que gosta de uma bobagem, ou de uma reflexão, ou de uma bobagem que faz a gente refletir:
Se a mitologia grega é a sua praia, talvez você goste de alguns outros textos meus. Não é a primeira vez que cito o ensaio do Italo Calvino sobre a Odisseia: já o utilizei numa comparação de um romance do Philip Roth com um do Reinaldo Moraes. Escrevi um conto que se chama Sísifo Libertado, disponível neste pdf ou neste link. E tem muitos outros textos — sobre mitologia ou não — na versão blog da newsletter: Freio de Mão.