Dedos de salsicha – a imagem que vale mais que mil resenhas
Tudo que você precisa saber sobre "Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo" cabe na palma de uma mão com dedos de salsicha
The Doors? Jim Morrison? He’s a drunken buffoon posing as a poet. (…) Give me The Guess Who. They got the courage to be drunken buffoons, which makes them poetic.
Lester Bangs em Quase Famosos, de Cameron Crowe
Em algum universo paralelo, eu não escrevi este texto, mas outro chamado “19 Maneiras de Olhar para Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo”. A ideia me veio enquanto o filme ganhava tração na temporada de prêmios, e seria uma paródia bem vagabunda de um livro que não li, 19 Ways of Looking at Wang Wei, onde Eliot Weinberger discute traduções do poeta chinês clássico. Nesse universo paralelo, eu teria feito uma espécie de colagem de perspectivas sobre o filme, que iriam da perplexidade à revolta ao fascínio ao assombro à indiferença a mais sabe-se lá onde.
Mas não deu. A internet, etc. Enquanto eu pensava se chegaria a tantas maneiras, pois só me ocorriam umas quatro ou cinco, no máximo seis, o filme fez muito barulho e ganhou sete Oscars. Milhões de palavras em todo lugar ao mesmo tempo – 19 bilhões de caracteres seria uma cifra mais apurada.
Me veio um estalo: será que a melhor reação diante de um filme dispersivo é a dispersão? Por que não o esforço contrário, da concentração? Em vez de 19 ou 19 mil e uma maneiras de ver o filme, restrição de foco: pinçar uma imagem. Extrair dela o máximo. Ver no que dá. Mas qual delas?
Simples. Os dedos de salsicha.
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Tem uma frase talvez apócrifa do Howard Hawks de que gosto muito: para você ter um filme, precisa de três boas cenas. Só. Cenas memoráveis, impactantes, que vão ficar na cabeça de quem viu. É claro que você não consegue fazer uma obra-prima só com três cenas, mas já tem um filme. Precisa ligar uma à outra, encenar, musicar, editar, etc, mas isso vem depois.
Acho que podemos concordar que Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo tem no mínimo uma cena marcante, uma imagem insólita, absurda, que não vai sair da sua cabeça tão cedo. Sim: os dedos de salsicha.
Não me surpreenderia se estranhassem a escolha. Por que não o bagel em que Jobu Topaki quer colapsar o universo? Por que não os olhinhos que Waymond cola por todo lugar? Ou então a pochete que surra um segurança, consolidando a virada no tom do filme? Em termos de importância, as pedras no meio do caminho de mãe e filha, no universo estéril, também parecem mais interessantes. No meio disso tudo, os dedos de salsicha podem parecer só mais uma piada ridícula. E são.
E daí? Às vezes é nas piadas mais idiotas que brilha um grão de verdade.
Posso estar errado, mas me parece que uma análise dessa imagem renderia aspectos interessantes. Destaco três.
Primeiro: Evelyn se conecta com aquele universo numa tentativa de lutar que não dá certo. Os dedos de salsicha são, portanto, índice de inabilidade, de falha, de erro.
Segundo: nesse universo dos dedos de salsicha, há um gesto romântico, bizarro e bobo, de enfiá-los na boca da pessoa querida. É a piada ao quadrado, digamos assim: dedos de salsicha não eram ridículos o suficiente para você? Então engole essa agora. Literalmente.
Por fim, nesse momento há uma citação a 2001: Uma Odisseia no Espaço, à cena clássica da “aurora do homem”, em que os macacos com dedos de salsicha triunfam sobre os macacos convencionais. Foi quando nossas realidades divergiram.
Autorretrato pintado à mão inábil
Esses três aspectos me parecem se ligar à disposição geral do filme. À sua postura. Dizer “seu ethos” seria muito pedante, mas fazer o quê? Vejamos em que sentido.
Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo é um filme desequilibrado. Maluco. E é assim de propósito. Aos quinze ou vinte minutos, bem quando o Inácio Araújo começou a achar uma merda, o filme joga pela janela qualquer pretensão de razoabilidade, drama sério, realista, ponderado, equilibrado. Não são só os dentes dos seguranças que voam para longe com os golpes de pochete de Waymong Wang; a noção de bom gosto vai junto.
Basta ver o gesto romântico do universo dos dedos de salsicha: não há nada de sutileza nele. Jogos de olhares, jeitos de piscar, movimentos sutis do rosto, palavras escolhidas com precisão pelo roteirista e atuadas com entrega pelo ator – nada disso. Dedos de salsicha enfiados na boca da pessoa amada, que baba mostarda e ketchup em resposta.
Até aqui, estamos no terreno da comédia. Mas, de algum modo, a imagem de uma mão inábil por causa de seus dedos de salsicha parece expressar simbolicamente algo mais que a vontade pueril de fazer rir (nada contra isso, muito pelo contrário). Ela sugere autoconsciência.
É com ela que Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo mostra a maneira como foi feito, o modo como quer ser entendido. Não foi Michelangelo nem Da Vinci que o pintaram; foi uma mão com dedos de salsicha. Parecida com a mão a que estamos acostumados, no mesmo sentido de que Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo parece um filme, mas ainda assim se comporta de uma maneira distinta. É preciso se adaptar – só assim, como ocorre na história, se pode descobrir as habilidades que, num universo tão ao revés do nosso, os pés desenvolveriam outra forma de destreza.
O que Stanley Kubrick diria?
Não me parece à toa que nesse momento dos dedos de salsicha o filme incorpore a cena inspirada em 2001: Uma Odisseia no Espaço. Ele está comentando visualmente a sua filiação, a sua genealogia.
No filme de Kubrick, a cena aponta para a ideia de evolução. Ali estariam os macacos primordiais, o tronco de onde evoluiu o gênero humano, a partir da manipulação precisa de armas – no caso, o osso. Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo parodia isso: o macaco com dedos de salsicha é visto estapeando o outro. A linha evolutiva sofreu um desvio. Chegou a um destino totalmente distinto, saindo de um lugar parecido.
Não haverá aí também um comentário metalinguístico? Transpondo para o universo dos filmes, é como se os Daniels evocassem uma linhagem das mais nobres do cinema mundial – Martin Scorsese incensa Kubrick no seu documentário sobre os filmes americanos, vendo-o como um dos iconoclastas, o seleto grupo de artistas fundamentais que transformaram a linguagem audiovisual – e inserissem seu próprio desvio. Eles sairiam de um lugar parecido, mas dão em algo totalmente distinto.
Se o cânone cinematográfico corresponde à evolução meticulosa e detalhista de Kubrick, com seus gestos precisos que exigem muito mais rigor do que as mãos “comuns” podem oferecer, então os Daniels vão estapeá-lo com seus dedos de salsicha.
É um gesto meio bárbaro e insolente, que abraça o risco do mau gosto, do desequilíbrio, da bagunça e do erro puro e simples. Mas não vem do vácuo, não tem nada de gratuito: é um galho torto na árvore do cinema americano. (Pixar, as Wachowskis, Frank Capra, o multiverso dos filmes da Marvel, toda essa ramagem hollywoodiana está lá também.)
Deleuze numa hora dessas?
Nesses termos, daria para entender Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo segundo as coordenadas de Gilles Deleuze. Parece pedante e absurdo, mas vem comigo.
Nos seus livros que trazem monografias e apreciações de filósofos individuais, como Hume, Kant, Nietzsche e companhia, Deleuze dizia que buscava como método uma espécie de enculage desses autores. Em bom português: ele os enrabaria para trazer à luz uma espécie de “filho monstruoso”, algo que derivaria daqueles pensadores, mas ao mesmo tempo divergiria de modo surpreendente.
Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo seria um “filho monstruoso” da grande tradição do cinema americano. Nesse sentido, se nos restringirmos prêmio de Melhor Filme, ele se opõe a Os Fabelmans, de Spielberg, derivação “correta”, boazinha e carinhosa, redondinha, sem volume alto nem bagunça. Isso em relação à forma.
Já quanto ao conteúdo, tanto um como outro terminam com uma grande reconciliação familiar, o gesto de aceitação – ainda que enviesado – de uma figura parental: Evelyn abraçando Joy, John Ford aconselhando Sammy Fabelman. O melodrama motivacional acusa a descendência, funciona melhor que qualquer teste de DNA.
Hollywood não deserdaria esse desvio. Não recusaria um afago sincero desses dedos de salsicha. Ainda mais com o cheiro ainda fresco de salas lotadas e de uma bilheteria com cem milhões de dólares acima do orçamento. Por eles Hollywood tossiria sangue – babar mostarda e ketchup não é nada.
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