Rabiscos em estado crítico #3: dois artistas (argentinos) das sombras
Mariana Enríquez e Él Mató a un Policía Motorizado se roçam na encruzilhada ao som dos anos 1980
Él Mató a um Policía Motorizado é, obviamente, o nome da banda argentina de rock alternativo que em 2023 lançou o álbum Super Terror. Mas a frase poderia ser uma citação de Mariana Enríquez, conterrânea deles. Logo no início da obra-prima de ME, Nossa Parte de Noite, por exemplo, o médium Juan e seu filho Gaspar fogem por uma estrada, numa ocasião perfeita para se dar o que diz o nome da banda. Talvez com uma mãozinha – dourada e demoníaca, ainda pingando sangue, nacos de carne pendentes das garras – do sobrenatural. Outro super terror.
Apesar do nome do disco, o Él Mató não dialoga exatamente com o universo do terror. Segundo entrevista do cantor Santiago Motorizado ao Programa de Indie, o título queria na verdade explorar uma dualidade: energia vital, expansão, intensidade (“Super”) vs. tensão, melancolia, angústia ("Terror“). Tanto quanto nas letras, esse jogo de duas faces aparece na instrumentação, que destaca os sintetizadores, as batidas eletrônicas e as levadas típicas dos anos 1980. Cor, sabor, textura de máquina; ritmo, timbre e voz de gente. De quem é a vitalidade? De quem a angústia? Misturam-se no som do futuro do pretérito – “retrofuturismo”, de acordo com Santiago.
O romance de Mariana Enríquez abrange algumas décadas, mas se concentra na segunda metade do século XX. Dos anos 1960, com a contracultura e seu amor livre até no ocultismo, a meados dos anos 1990, com a aids e as sequelas da ditadura. O recheio, no entanto, está na mesma década de 1980 que hipnotizou o Él Mató. No caso de Enríquez, isso se manifesta com força na própria narrativa, mais do que na temática: há um capítulo que a própria autora confessa evocar aquelas narrativas de crianças-de-bicicleta-explorando-a-estranheza-de-um-microcosmo, no subúrbio onde Steven Spielberg e Stephen King são vizinhos. Candura e monstros.
A dualidade de que fala Santiago Motorizado não poderia se explicitar mais do que na música “Tantas Cosas Buenas”. Claro-escuro entre o título e o refrão: No me digas que / las cosas van a estar bien. As coisas boas desmoronam, tudo vai se perder, já nada mais importa. Num ano se ganha a Copa do Mundo, no outro as urnas mostram que, no fundo do poço, há uma masmorra, dentro dela um abismo despenteado. La noche eterna.
A relação de Juan e Gaspar é o centro de Nossa Parte de Noite – núcleo dramático, emocional, literário. O pai nota no garoto os mesmos traços da mediunidade que o prendeu a uma Ordem sinistra, interessada em explorar seus dons até o esgotamento absoluto, de carne e espírito. A fuga não é a primeira nem a última das medidas tomadas por Juan para impedir que Gaspar se veja preso pela mesma herança maldita (literalmente, no caso). Muitos mundos para Juan administrar – o temor do futuro, a exploração do presente e a gravidade do passado o tornam uma presença estranha, etérea, na infância de Gaspar. Meio cá, meio lá, onde quer que lá seja. Pouco mais que um espectro.
Num verso de “Medalla de Oro”, single de destaque de Super Terror, a dualidade chega ao máximo: Hay una luz que arrasa con todo. A voz de Santiago Motorizado a repete várias vezes, ora subindo as notas na melodia, ora mantendo-as na altura mais comum da música, mas sempre cantando com doçura a imagem devastadora. Uma luz que destrói tudo. Energia e vitalidade seladas, soldadas uma à outra, entre destroços. Um clarão, talvez explosivo, talvez silencioso, mas implacável.
Quando se dá conta dos poderes de Gaspar, a Ordem não mede esforços atrás do garoto, já adolescente. Querem que ele lhes dê o mesmo acesso à Escuridão que Juan lhes garantia, fonte de poder e fascinação da Ordem. O romance de Enríquez economiza com habilidade os detalhes sobre a Escuridão, uma espécie de plano alternativo e monstruoso da realidade, dimensão escusa, estranha, inexplicável – e, ao mesmo tempo, chave simbólica do livro todo, ecoando desde o título: nuestra parte de noche.
Os romances góticos, os filmes de terror, a literatura fantástica, a música gótica, todos costumam trabalhar com o jogo entre presença e ausência. Em The Weird and the Eerie, Mark Fisher usa esses termos para tentar definir as duas vertentes artísticas: a presença do que não devia estar lá, a ausência de algo que devia estar, o embaralhamento entre elas, etc. Numa palestra, China Miéville enfatiza a dimensão gótica do marxismo, lembrando que Marx e as irmãs Brontë são contemporâneos e que o capital é comparado pelo barbudo a um vampirismo. Quem – ou o quê – fala, quando fala o vazio?
Ainda na entrevista ao Programa de Indie, Santiago Motorizado fala sobre o impacto da pandemia no disco, o primeiro da banda só de inéditas desde 2017. Não lhe interessam as respostas artísticas diretas aos eventos, sua tematização explícita, diz Santiago, mas algo sempre influencia. Ainda que inconscientemente. Como aranhas e outras criaturas da noite, o real sempre encontra frestas por onde se manifestar. Talvez só o reconheçamos quando desfigurado. Sob outra forma, sua luz ou sua sombra (onde acaba uma e começa a outra?) nos cegam. Arrasam com tudo.
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