Rabiscos em estado crítico #1: A Feira do Livro, Lima Barreto, Christopher Hitchens
Artigos definidos, a rua e os livros, dois contestadores sem misericórdia e outros assuntos que não vou e nem quero esgotar
(O texto de hoje é um experimento. Outra forma de newsletter, mais pontual, sem uma única reflexão desenvolvida de modo inteiriço. Tem até dica cultural, quem diria.)
É dia de feira
Algumas coisas me incomodam n’A Feira do Livro, que ocupa no feriado a praça do Pacaembu, em São Paulo. A primeira delas é o artigo definido “a”. Como se não houvesse outras.
Talvez seja chatice minha. Mas para quem sempre vai nesses eventos, fica claro que se trata de “uma” feira do livro. A meio caminho da Bienal do Livro, que também dá descontos relativamente baixos, e da Feira da Unesp, mais generosa com o consumidor, com 50% off, presencialmente. Uma só ocorre de dois em dois anos, enquanto a outra não tem a máquina de propaganda d’A Feira, nem tanta capilaridade nas principais redações.
Mas ela tem lá suas vantagens. Por exemplo, as editoras independentes. Deixo uma dica: A Arte do Erro, de María Negroni, pela 100/cabeças. Ensaios sensacionais, sobre Walter Benjamin, Arthur Rimbaud, Bruno Schulz. Vai na minha.
Recordando Lima Barreto
Antes da autossociobiografia de corte francês, na linha de Annie Ernaux e companhia, houve Lima Barreto. A Ateliê está lançando edição nova de Recordações do Escrivão Isaías Caminha, com sua mistura de análise de classe, dissecação da própria trajetória e elaboração em linguagem literária direta. Todas elas características frequentes nesses “romances sem ficção” franceses. Longe de mim ser Policarpo Quaresma, até porque uma leitura não impede a outra. Mas que tal valorizar o produtor local?
Uma citação incrustada na minha cabeça
Aliás, “sem ficção”? Entendo o ponto. Mas duvido. Falta nitidez nos termos. “Ficção”, por exemplo. Lembra aquela frase do Philip Roth em entrevista ao David Remnick?
“Se você olhar para Henry James aqui, James Joyce ali, Ernest Hemingway lá, você vai perceber o seguinte: ficção não tem esse nome porque inventa eventos, mas porque inventa a consciência.”
Consciência que se traduz em atenção à forma: você pode não inventar nada em termos de eventos narrados, mas simplesmente não tem como não inventar uma forma. De arranjar a ordem dos episódios. Das palavras de cada frase. Da articulação das partes da narrativa. Uma forma que implica um sentido – a maior ficção de todas.
Quem te viu, quem te veria
Aquela história de palavra-puxa-palavra, autor-puxa-autor: morreu o Martin Amis, que nunca li; caí no texto dele sobre seu querido amigo Christopher Hitchens, que li um pouco; logo estou folheando – ainda que digitalmente – trabalhos do Anti-Clinton. E aí você sabe, é o tipo de autor que não se pode ler sem ressoar, no fundo da cabeça, aquela pergunta: e se estivesse vivo, o que diria? Cidadão anglo-americano com visada internacional, ateu incisivo e meio fundamentalista, crente no poderio militar dos EUA para trazer esclarecimento ao Oriente Médio: que diria de um ano como 2016, com Brexit e Trump num só golpe? Ainda estaria tão seguro de que tudo que apoiava (liberdade de pensamento, secularismo, democracia) estava de um lado, e tudo que repudiava (fascismo, fanatismo, covardia) do outro?
Moldar-se num sonho e perder-se
Devo ter lido em algum lugar. Mas tem um bovarismo em Hitchens: lendo Orwell a vida inteira, inspirando-se no homem, buscando uma causa nobre tipo a republicana na Guerra Civil Espanhola para chamar de sua. A tentativa de viver um ideal de pensamento e ação acaba lhe mordendo os calcanhares. E o que sobra? Alguma felicidade? Mesmo que fosse, seu ideal era ter razão, falar a verdade: contrarian, truth-teller, dissident. É possível ter razão ao lado de quem dali a pouco se enfileiraria atrás de Trump?
Triste fim de Christopher Hitchens.
(Embora estivesse certo no apoio incondicional a Salman Rushdie.)
Em páginas alheias
Saiu resenha minha no Globo do sábado passado: Louças de família, da Eliane Marques. Romance de poeta, que se preocupa menos com a história do que com o fio das imagens. E vai na onda de certa ficção contemporânea, com um Eu-narrador central de que se espalham fios de memória meio familiar, meio social. Deformando tudo ao seu redor, o racismo renitente do Brasil.
Lima de novo
Do século XX para trás, exceto Machado, a literatura brasileira costuma precisar do famoso “veja bem” para ser apreciada. Sabe aquele esforço de adequar expectativas, de contextualizar, de se pôr na cabeça de outra época e outra estética?
Lima Barreto não precisa. Recordações do Escrivão Isaías Caminha muito menos. Para em pé sozinho. Surra muito livro contemporâneo, inclusive.
Tem a ver com sua atualidade, claro. O racismo que Eliane Marques investiga já tinha em Barreto uma denúncia feroz, difícil de superar.
E quando fala das revoltas? Perceba que, ao final, retratando a Revolta da Vacina, o autor troca o motivo da insurreição: em vez da obrigatoriedade das injeções, o governo imporia à população o uso de sapatos. O rumor é que vão cortar os pés de quem não aderir ao calçado, não se adequar. Meio Procusto, meio Cinderela (na brutalidade do original).
(Aliás, será a Cinderela a Arqui-Emma Bovary?)
Detalhe de gênio. Testemunha da Abolição, Lima Barreto certamente trocou o estopim de vacinas para sapatos pensando nos libertos que correram para comprá-los, antes proibidos para cativos. Muito insight sociológico sonha com a elegância dessa sutileza.
Na época ignoraram isso. Lógico. Ficaram mais preocupados com a sátira à clef das redações e do meio intelectual — vaidades... O ridículo das figuras do meio cultural ganha muito se lido em contexto, mas nem sei se precisa. Até porque, redivivo, Lima Barreto não precisaria de muitos reparos para atualizá-la.
Só alguns acréscimos. De cenário, por exemplo. Quem sabe uma feira literária em praça pública?