Doutor Aira ou: como aprendi a parar de me preocupar e amar livros sem final
César Aira está para leitores hoje como Kafka para García Márquez: prova que tudo é possível
Toda história tem começo, meio e fim, certo?
Depende.
A princípio, a gente diz que sim. Não é intuitivo? Parece até impossível pensar numa história que seja boa e que não siga essa lógica tão elementar: começo, meio, fim. O mínimo do mínimo. Como poderia ser diferente? Nunca se vê nada que foge a essa regra. Do hábito de vê-la aplicada, conclui-se que ela não só é necessária, como é boa.
Mas tem aquele exemplo do jovem Gabriel García Márquez, lendo A Metamorfose do Kafka, estupefato com a primeira frase: então pode fazer isso? Então pode fazer qualquer coisa?
Sim.
A escrita de César Aira é a prova recente dessa verdade às vezes esquecida na literatura, nas artes e – convenhamos – na vida. Autor tão prolífico que nos desnorteia, com livros contados já na centena, o argentino tem sido recuperado pela editora Fósforo, que está prestes a lançar a segunda caixa (serão quatro) com as novelitas de Aira. Nessa fornada, está um dos meus livros preferidos deste século: Um Acontecimento na Vida do Pintor Viajante. Coisa fina, em mais de um sentido.
40 Grandes Livros do séc. XXI (parte II)
Na primeira parte, falei de 11 livros que, para mim, entrariam numa lista dos 40 grandes livros do século XXI, um pouco na linha daquela votação do New York Times. Se você ainda não leu a primeira parte, vale a pena: apresento lá os critérios da lista e quais as minhas coordenadas – por exemplo, que os livros não vão ranqueados.
Daria pra ilustrar a ideia airiana de história sem final com Um Acontecimento... Ou então com As Noites de Flores (Nova Fronteira). Poderia ser algum dos textos recolhidos em A Trombeta de Vime (Iluminuras), ou a novela “A Costureira e o Vento”, publicado em Como me tornei freira (Rocco), ou A confissão (Papéis Selvagens). Os exemplos (e as editoras) se multiplicam, o que tem dois efeitos: comprova que se trata de uma intenção do autor, e não inabilidade; instiga a pergunta sobre o que ele quer com isso afinal.
Daria pra perguntar pra ele. É só ir até Buenos Aires e ver se ele te recebe; parece, inclusive, que é muito simpático. Mas tem o risco de sempre – escritores são mentirosos notáveis. (Às vezes notórios.) Pode estar contando uma história pra nós, e não mais que isso.
Não mais, e ao mesmo tempo tudo isso. Porque, no fundo, entre as várias possibilidades de entender o gesto de Aira, destaca-se esta: por que o final tem que ter tanta importância assim? Por que tudo tem de culminar em algum momento estarrecedor, um clímax da história, um plot twist ou qualquer coisa do tipo? Essas deselegâncias?
E se, desautomatizada a ideia de final relevante, nós descobrirmos que existe um prazer imenso no próprio gesto de contar uma história? Talvez ele valha por si.
(Sherazade como modelo de narrador.)
Armar uma história, complicá-la, expandi-la, botá-la em movimento. Essas operações que ou passam batido, ou são vistas como meios para um fim, se tornam um prazer em si mesmo nas novelitas de Aira. Não que ele seja um militante anti-conclusões; talvez argumentasse que não faltam exemplos por aí de histórias muito bem amarradas, para quem gosta. Só que ele vai fazer diferente.
Nem todo mundo aprova. Ricardo Piglia, um dos maiores escritores argentinos d.B. (depois de Borges), tinha uma bronca danada: disse uma vez que “César Aira” era um pseudônimo coletivo que seus conterrâneos usavam ao publicar um livro ruim. (Por outro lado, Aira tinha tirado uma onda com o Piglia fazia pouco tempo. Dissera que a obra-prima Respiração Artificial era livro de professor, não de escritor.) Cada um, cada um.
Mas acontece de se gostar. Me lembro bem de como foi comigo. Li “Como me tornei freira”, e achei esquisito o fim. Em “A costureira e o vento”, no mesmo livro, me espantei que a história estava complicadíssima – envolvendo um monstro parido pelo vento, uma costureira, um homem muito esquisito estacionado num posto de gasolina perdido nos cafundós da Patagônia, etc – e faltava apenas uma página. Como ele ia amarrar aquilo em tão pouco espaço? Não amarrou. Mas o caminho até ali...
Aí veio Um Acontecimento... e eu saquei. Daí em diante, foi outra história. Literalmente.
Já escrevi que Aira é um dos poucos autores contemporâneos, salvo engano meu, que de fato inventaram uma forma. Não acontece sempre na história da literatura. Muito pelo contrário: se calhar de ter um enquanto você vive, é muita sorte.
Mas depois me ocorreu que esse argumento não convence muito. Parece coisa de especialista. Falta só o jargão: “a literatura de Aira subverte o conceito de closure, de modo a produzir um estranhamento afim ao de Brecht e dos formalistas russos, mirando uma renovação perceptiva do leitor” – blábláblá.
É verdade que tem uma proposta muito bem pensada ali, as implicações conceituais se adensam, os encaminhamentos se multiplicam. Mas a experiência é mais direta: Aira ensina a ler de outra maneira. Expande. Aumenta as possibilidades.
Porque, quando você para pra pensar, se dá conta de que essa história toda de “sem final” é só o começo. Mesmo a narrativa mais bem amarrada que você conhece, com o fim mais redondo, satisfatório e interessante, se ela é boa mesmo, tampouco tem final. Ela apenas muda de endereço. Exatamente para onde você está pensando: a cabeça de quem lê.
A literatura argentina é uma obsessão tão manifesta por aqui, que não precisa voltar muito no tempo pra perceber: semana passada eu dizia que Seven é um filme de Jorge Luis Borges… Lá na versão blog, se você procurar a tag com o nome dele ou com o nome do Piglia, verá mais exemplos dessa fixação. Gosto muito também do Juan Forn, uma geração mais jovem que o Aira, continuador de Borges por ideias diversas.
Enfim: tudo indica que a obsessão não vai acabar tão cedo. Para as próximas vezes, já sabe:
Também há livros dele com gran finale. Leia A Prova e comprovarás.
“O mínimo do mínimo” é um palíndromo!