40 Grandes Livros do séc. XXI (parte II)
Continuando a eleição de grandes livros do século XXI, agora mostro a lista de obras e autores vindos dos EUA, da Inglaterra e sobretudo da América Latina
Na primeira parte, falei de 11 livros que, para mim, entrariam numa lista dos 40 grandes livros do século XXI, um pouco na linha daquela votação do New York Times. Se você ainda não leu a primeira parte, vale a pena: apresento lá os critérios da lista e quais as minhas coordenadas – por exemplo, que os livros não vão ranqueados.
Mas, se a curiosidade para conhecer os nomes for muita, você pode seguir direto para esta parte 2, com 14 livros dos EUA, da Inglaterra e, principalmente, da América Latina. À lista:

EUA & Inglaterra
Esboço, Rachel Cusk
Nem sempre o hype acerta (quase nunca, na verdade). Mas Cusk bateu aqui. Não vou descrever a premissa mais do que o mínimo – uma escritora inglesa viaja à Grécia e conta as histórias que ouviu –, porque ela só atrapalha, de tão batida. O encanto da prosa de Cusk é mais sutil, tanto que me escapa a explicação. Em que momento a história de uma briga de família em torno de um cachorro ganha tanto vigor? Só lendo e relendo, de lápis na mão, para saber.
A Cidade e a Cidade, China Miéville
O outro autor inglês desta lista parte de uma premissa distinta e inventiva: num mesmo espaço urbano, duas cidades se sobrepõem de modo quase completo, mas cisões políticas e sociais forçaram os habitantes de cada uma a ignorar a presença dos outros, até que um assassinato ocorre bem na fronteira delas. Comunista sci-fi, embora aqui mais comportado, Miéville articula narrativamente uma discussão muito forte sobre as linhas imaginárias pelas quais as pessoas morrem e matam – e, claro, faz isso com um baita romance policial.
An Elemental Thing, Eliot Weinberger
Seria uma colagem? Prosa poética? Poesia? Tradução? Tudo isso ao mesmo tempo, e mais. Weinberger reúne (e reescreve) fontes de textos ancestrais, dispersas por terras distantes entre si, mas todos interessados nos elementos da natureza. Na articulação dos olhares díspares também no tempo, Weinberger mostra que as imagens podem se repetir, mas nunca seus sentidos – no mínimo, porque sempre se ampliam.
Nem Vem, Lydia Davis
Aqui também a distinção entre prosa e poesia deixa de fazer sentido. Lydia Davis parece sugerir, e consegue provar, que há um grão de história em literalmente qualquer coisa. Já seria difícil. Mas funciona ainda melhor na extrema concisão e agilidade de seus textos. São quase sustos de linguagem, a que voltamos com um estranho magnetismo.
O Rei Pálido, David Foster Wallace
Poucos escritores se colocaram um desafio tão grande quanto escrever um romance que se passa no coração da IRS, a Receita Federal americana, o ambiente mais burocrático, chato, parado e tedioso que consigo imaginar (aí incluídas as versões correspondentes em outros países). DFW não só conseguiu, como fez um trabalho comovente, bonito mesmo. Tento explicar por quê numa resenha.
Fun Home, Alison Bechdel
Não que Bechdel não tenha um apuro gráfico e uma imaginação visual forte; claro que tem. Mas o que se destacou para mim nesta HQ incrível é o trabalho dela com o texto. A rede ampla de suas citações, a atenção a detalhes da linguagem (desde o título: o “fun” é um trocadilho com “funeral” e com “fun” de diversão), a densidade de cada fala em cada balão – tudo isso numa história que extrai mais força ainda dos silêncios, da incomunicabilidade, das lacunas.
América Latina
O Último Leitor, Ricardo Piglia
A princípio eu não colocaria não ficção na lista; por sorte, o Piglia é inclassificável. Escreve (e fala) numa zona em que crítica e ficção não se distinguem mais. Este livro é o ponto alto: Borges, Kafka, Gramsci, Che Guevara, Anna Kariênina, Joyce e Molly Bloom entram em cena para investigar o estranho ato de decifrar letras no papel. Um ato tão hipnótico que faz o líder guerrilheiro tirar um tempo, em cima de uma árvore e no meio de um conflito, para abrir um livro. Piglia ensina a ler, no sentido mais forte de cada um desses verbos.
Nossa Parte de Noite, Mariana Enríquez
Também argentina, Mariana Enríquez nos agarra pelo pescoço com este romance, até nos fazer sangrar. E no fim pedimos mais. Um pai tenta impedir que seu filho caia nas mãos de uma Ordem sedenta por se aproveitar dos poderes sobrenaturais deles. Enríquez dá espaço para todas as suas obsessões (ocultismo, opressão institucional, rock ‘n’ roll, etc), e todas elas se reforçam, numa das narradoras mais vigorosas de hoje.
Múltipla Escolha, Alejandro Zambra
Assim como no caso de Gonçalo M. Tavares, a ficção de Zambra está representada por este livro, que qualquer outro dele poderia substituir – consistência e qualidade são o lema. Se destaco Múltipla Escolha, é pela sacada formal sem paralelos: estruturar os fragmentos narrativos como se estivessem no “vestibular” chileno, dando ao leitor a máxima margem de interpretação para não mais escolher, e sim criar a alternativa mais apropriada.
Putas Assassinas, Roberto Bolaño
Não li a tetralogia de Ferrante, tampouco os grandes romances de Bolaño – quem sabe entram numa versão futura desta lista. Mas quero fazer jus aos contos do escritor chileno. Retomando personagens de outras histórias, adensando as suas obsessões (o fracasso, seja político, seja literário, e sempre existencial), ele alcança na forma breve uma paradoxal dispersão concentrada, em sintonia com o seu universo latino-americano de exilados, párias e marginais em geral.
O boxeador polaco, Eduardo Halfon
Nascido na Guatemala, radicado nos EUA, descendente de judeus árabes e poloneses, Halfon mostra nestes contos que as raízes não estão em latitudes ou longitudes, e sim em histórias. A consciência metalinguística que o faz estruturar um conto a partir de uma piada de Mark Twain não impede que os textos alcancem a pungência dos conflitos humanos, a partir de situações atrozes, como a narrada no conto-título.


Os Lemmings e outros, Fabián Casas
Ser jovem, ser delinquente, ser besta e ser apaixonado pela vida, mesmo com as pancadas que ela nos dá de brinde. Fabián Casas fala disso tudo, e de muito mais, nestas narrativas que encapsulam o espírito épico e a moldura ridícula da adolescência – tardia ou não.
Um acontecimento na vida do pintor viajante, César Aira
Por mim, Aira ganhava o prêmio Nobel de Literatura todo ano. Que mais se pode conceder a um escritor que subverteu, simplesmente, a terceira parte da clássica estrutura “começo, meio e fim”? Foi com este livrinho – “inho” só no número de páginas – que afinal entendi o que ele queria fazer: dar ao leitor o gosto máximo da liberdade na criação. Aira é um idealista, para quem brincar (com a forma literária, mas não só) não tem fim.
El Hombre que Fue Viernes, Juan Forn
Em tese, as contratapas de Forn são não ficção; na prática, são literatura pura. Ele as chamou de “notas de rodapé” ao século XX, e faz sentido: são episódios, momentos, pequenas vidas fascinantes que encontrou ao longo de suas leituras. Ponho esta coletânea como forma de representar o conjunto, a prática semanal, o exercício constante da inteligência em forma de contos não ficcionais – entre outros motivos para amar os textos de Forn.
Na próxima edição, concluo a lista dos meus 40 grandes livros do século XXI com as obras brasileiras. Já se inscreva e nem corra o risco de perder o gran finale:
Se você já frequenta a newsletter ou conhece a versão blog dela, já deve ter reconhecido a habilidade gráfica da Keryma Lourenço na arte que abre este post. Se não conhecia, então que inveja de você, que vai poder ver pela primeira vez aqui.
Porra, a série tá demais.
Eu venero o "Graça Infinita", mas te confesso que o "Rei Pálido" não me passou. Achei que acontece com ele o que o James Wood já apontava como desafio na prosa de autores como David Foster Wallace: lidar com os ruídosdo mundo contemporâneo (ou com um ambiente que você bem definiu como "chato, parado e tedioso") sem soar também como ruído. A mim, o "Rei" só soou chato parado e tedioso mesmo.