Dando-se à luz: sobre "Três Camadas de Noite", novo romance de Vanessa Barbara
Autora de "Noites de Alface" e "Operação Impensável" volta à ficção com livro sobre escritores deprimidos, coronavírus, deuses gregos e a sabedoria das crianças de 2 anos
Pode-se adentrar as Três Camadas de Noite, novo romance de Vanessa Barbara, com ao menos dois focos de luz: a poética da observação, rente ao cotidiano, e a da sondagem psicológica, mais típica da ficção. As duas se somam neste livro que fala de maternidade, pandemia, mitos gregos, ruído branco, depressão e a sabedoria de uma criança de dois anos (“O saci morre?”, “eu consigo cheirar onde é que está o metrô”, “o buraco negro tem chão?”).
Como sugere o título, o livro segue três planos. No principal, uma escritora narra sua experiência como mãe, algo já difícil em si, mas ainda mais complicado com uma depressão crônica e a pandemia. No segundo plano, lemos um “diário de campo”, com pequenas vinhetas cômicas, ternas ou pungentes (às vezes, todas as anteriores) sobre o convívio com a criança, o menino Heitor. Por fim, há um contraponto menos ficcional, com as atribulações de artistas deprimidos: Sylvia Plath, Clarice Lispector, Franz Kafka, Henry James e sua irmã Alice.
Os três planos se alternam, mas ganham unidade no mesmo estilo claro, direto, bem-humorado e fluido. Tão fluido, de fato, que quem lê com menos atenção pode achar o livro uma mera réplica por escrito da passagem do tempo, como se nada acontecesse. Pessoas queridas ajudam a mãe com o bebê. Não se dorme. A depressão piora hoje, melhora amanhã. As leituras mudam. O menino fala. O vírus chega. Isolamento. Desespero, expectativa, cansaço. Os mitos gregos que a mãe ama encontram uma nova audiência de um. Assim, o leitor nota que a poética da observação do cotidiano pode preencher o livro, mas talvez se pergunte: ela é suficiente para movimentá-lo?
Aí entraria o outro foco de luz, a sondagem psicológica, a elaboração literária do pensamento e das emoções. Mas aqui o livro de Vanessa Barbara também dribla a expectativa mais óbvia: o quadro depressivo da narradora costuma se manifestar numa necessidade titânica de sono – dorme por mais de quinze horas, num episódio. A ponto de o diário de campo flagrar o menino explicando aos dinossauros de borracha o problema da mãe: quando ela era pequena, estava bem, mas teve de usar óculos. Quem nunca?
Leitores que preferem cenas espetaculosas de surto psicológico podem não gostar, mas aqui faz sentido. Afinal, além de claro, direto etc, o estilo do livro também é discreto. Por um lado, a transformação da personagem aparece no acúmulo de miudezas (o “mundo minúsculo” das crianças, das brincadeiras, da rotina e também do vírus). Por outro, de modo ainda menos visível, mas tão importante quanto, ela surge via leituras.
Daí a importância do terceiro plano, o da narração da vida de artistas deprimidos. Não pelas informações ali encontradas, em geral dentro da biografia-padrão dessas figuras. A importância está no que o arranjo, a sequência, a construção desses trechos revela sobre a protagonista. A treva quase absoluta da vida de Plath dá lugar a outra, menos cerrada, em Clarice, e outra ainda menos em Henry e Alice James. A elipse da reação da narradora sugere não exatamente uma melhora, mas uma nova forma de ela lidar com sua condição.
Assim, o terceiro plano costura os outros, fazendo com que os dois focos de luz (a observação do cotidiano e o mergulho na interioridade) se integrem numa iluminação maior: a protagonista se reencontrando consigo, mãe e narradora fundidas, na síntese criativa de um novo projeto literário (a mitologia grega na voz de suas mulheres). Uma iluminação quase sabotada pelo epílogo, que lembra os últimos episódios de telenovelas, com sua retomada didática da história. Mas a essa altura já se atravessou a escuridão, já se está fora do livro, onde é mais fácil dizer que a lanterna ou a vela que nos guiou lá dentro é supérflua, e a noite que ficou para trás, habitável.
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Adoro a prosa da Vanessa Barbara. Uma das nossas melhores cronistas. Adoro como os romances dela também têm esse acento crônico.