O show de Truman Capote
Um conto sobre dinheiro, sede e desejo; um dia na vida de um escritor decadente
Truman Capote já se acostumara aos passos sempre a segui-lo, às vezes junto com ruídos de obturadores e flashes. Naquela tarde quente de 1976, ao caminhar rua abaixo em Manhattan, os óculos escuros cobrindo o rosto magro e flácido, ele procurou ignorar o paparazzi na sua cola desde a manhã, desde a saída do prédio da editora sedenta por qualquer rabisco de Súplicas Atendidas.
Para Truman, o paparazzi era pouco mais que os outdoors, com suas cores vibrantes e logomarcas estridentes: uma mancha indiscreta, irritante. Tinha tanta coisa melhor para se prestar atenção. Como aquele rapaz meio latino, moreno e de ombros largos mais adiante. Pareceu-lhe um fantasma, que reconheceu de algum lugar; imagem opaca, talvez devido ao tom de pele do rapaz, suada como se tivesse trabalhado durante semanas sob o sol do Alabama. Truman não pôde deixar de segui-lo.
Eles caminharam por quadras e quadras, até as feições dos bairros mudarem. Saíram da área que Truman frequentava, onde a fuligem e as buzinas não apagavam o glamour de edifícios com apartamentos amplos e bem iluminados. As madames com sacolas da Tiffany’s deram lugar a homens de jeans puídos e braços picados. O barulho de táxis velozes sumiu, trocado pelo burburinho de bares, cheios de menores de idade de ambos os sexos e mais alguns. O rapaz entrou num bar desses. Truman também.
Truman não teve seu olhar retribuído pelo rapaz, pelo menos não durante os longos minutos que ficou no balcão. Bebia um destilado qualquer, o menos pior do cardápio, enquanto admirava o rapaz dançando, rindo, cheirando, contando vantagem – beijando uma garota, outra, outro. Ao terminar o drinque, Truman reconheceu uma urgência fisiológica de escrever. Rabiscou duas ou três frases num guardanapo e espiou o rapaz ainda sedento. Nada. Algumas doses depois, tomou um táxi.
O álcool abreviou o caminho de volta. Entregou os últimos dólares de sua carteira para o taxista, que deu o troco em uma nota amassada. Ao descer em frente ao edifício, o pé firme contra o chão bamboleante, ouviu os cliques de uma câmera ansiosa.
Antes que viessem as perguntas, entrou apressado: queria se sentar logo à máquina, antes do abraço sufocante da sobriedade. Datilografou por minutos ou horas, enquanto nascia o sol. Já de manhã, levantou da cadeira para preparar um café, com um par de páginas frescas na mesa.
Os armários da cozinha estariam vazios, não fosse por uma garrafa de vodca quase terminada, um limão solitário e uma lata qualquer de comida insuportável. Truman suspirou. Pensou em descer, ir a uma padaria qualquer, mas e o paparazzi? O rapaz provavelmente pularia em cima dele, salivando por atenção, um comentário, qualquer coisa. E se...?
Truman desceu e, no saguão do prédio, pediu para o porteiro chamar o rapaz. Deu ao menino uma nota e pediu que lhe trouxesse uma xícara de café, um croissant e um pain au chocolat, as sweet as you can get. O mais rápido possível. O paparazzi alisou a nota. Recusou dizendo que era falsa. Desconfiado, Truman chamou o porteiro, que deu o veredicto: falsa sim, senhor.
Truman se abandonou na poltrona do saguão do edifício – a ressaca redobrada. O paparazzi saiu correndo, provavelmente em direção a um dos tabloides que amavam Capote. Que manchetes! “Escritor best-seller tenta passar nota falsa a repórter”, “Autor consagrado abandona novo livro para cair na bebedeira”, “Capote a sangue caliente: quem é a paixão latina do terror das socialites?” Encharcado como em suor, Truman tinha enjoo: dos passos, dos cliques de câmeras, do dinheiro que parecia escoar, dos holofotes que o acuavam na luz, da merda do livro que não saía nunca.
Publiquei uma primeira versão deste conto na coluna que eu escrevia para o site Salada de Cinema, “Cine-Remix”. A ideia era misturar elementos de filmes de uma maneira criativa e inesperada. Não é difícil adivinhar de quais obras parti. Se curtiu, fica uma sugestão:
Lembrei deste texto porque na última semana vimos a boa segunda temporada da série Feud: Capote vs. the Swans (na prática, uma minissérie, autocontida), sobre o período de estiagem criativa do autor de A Sangue Frio e o escândalo em torno dos capítulos de Súplicas Atendidas, que Capote imaginava ser sua obra-prima. A série está no Star+. Já viu? Quer ver? Prefere passar longe?
Na minha cabeça, nos meus projetos inacabados, este conto faz parte de um conjunto a que darei o nome de Sibéria. Alguns deles estão presentes no meu blog Freio de Mão, como este e este. Grandes chances de outros aparecerem por aqui, algum dia. Se não quiser perder, já sabe:
Excelente!
Se expandisse pra um romance, claramente eu leria, pela vontade de saber mais do que podia rolar com esse personagem :)