Imagino minha mãe lendo, talvez usando como apoio do livro a curva da barriga onde ainda estou – quase pronto, pois já nos aproximamos do mês do parto. Ela está concentrada na página. Percorre as linhas de um texto técnico do qual precisa extrair o que realmente é relevante, garimpa dados e conclusões em meio à névoa de uma linguagem burocrática, acadêmica no pior sentido. Tenta ao máximo ignorar o som ambiente da TV ligada, a programação no automático, novela ou telejornal ou qualquer coisa assim. As notícias, com certeza, estão agitadas; não é todo ano que tem impeachment, pelo menos ainda não, não naquele que é o impeachment inaugural do país. Deve estar recostada no sofá da sala, provavelmente um pouco irritada porque precisa, a todo momento, se levantar e ir ao banheiro. É num desses traslados que lhe sobe o sangue ao ver o futuro ex-presidente na tela, de terno bem cortado, cabelos engomados e cenário pronto, cuspindo retórica Brasil afora. É visível o esforço de não parecer acuado, esforço inútil, como o são todas as manobras dos últimos dias para espichar, ainda que um pouco, sua permanência no cargo. Minha mãe aumenta o volume, quem sabe se para ouvir melhor o absurdo, se para reforçar definitivamente a posição contrária ao futuro ex-presidente ou se para saborear aquele raro momento, na vida brasileira, em que a inspiração e as conspirações políticas se alinham. Minha mãe foi com meu pai a uma manifestação das Diretas, e perderam; quando elas vieram, eles também marcaram presença, votando no candidato adversário do futuro ex-presidente, e perderam; finalmente, parece que não vão perder dessa vez. Minha mãe nem ergueu de novo o livro, abandonado em cima de uma almofada, de tão concentrada que está no pronunciamento desesperado de um homem prestes a cair, prestes a ser derrubado. Nessa hora ela talvez se esqueça até da gravidez. Com certeza esquece quando ouve o futuro ex-presidente pedir que, no protesto marcado para os próximos dias, seus apoiadores mostrem ser a maioria, ostentando camisas verde-amarelas contra as roupas negras dos manifestantes. Tenho certeza de que é nesse instante exato que minha mãe decide ir, a qualquer custo, ao protesto. Mesmo que grávida de oito meses, mesmo que sozinha, mesmo que apenas por uma hora, ou meia, ou quinze minutos: precisa estar lá, uma camiseta escura cobrindo a nós dois, tinta preta no rosto, no meio da avenida tomada por pessoas pintadas e vestidas da mesma forma. Ela ainda ouvirá do meu pai palavras de preocupação, mais sensatas do que sensíveis ao momento, preocupado antes com ela e comigo do que com o país, embora ele também esteja de total acordo com a pauta – só não vai porque no dia está de plantão. Talvez ela o tranquilize, dizendo que acha que não vai ou que, mesmo se fosse, ficaria por pouco tempo. Ela lhe dirá que, por sorte, não moram longe do local de concentração. Que vai apenas dar uma passada. Marcar presença. Mas no fim ela estará lá, engrossando o luto na avenida. Manterá a todo momento o estado de alerta, sem, no entanto, estar de olho no relógio. Vai fazer coro com os manifestantes até se cansar. Vai caminhar algumas quadras da avenida e bem depois voltar para casa, por causa da dor nas pernas, apenas. No espelho do banheiro, tirando a tinta preta das maçãs do rosto, soltando os cabelos, terá a sensação mista de euforia – o coletivo é contagioso – e dever cumprido, tanto por ela quanto por meu pai, por mim. É o primeiro protesto a que não fui, a que quase fui.
Se não fui ao primeiro protesto porque ainda não tinha nascido, o que me impediu de ir ao segundo? Temperamento, antes de tudo: cauteloso, precavido e principalmente avesso a aglomerações. Nesse segundo protesto, acompanhei as perturbações com alguma antecedência, pois tinha amigos que foram a quase todas as manifestações iniciais. Eu também era afetada pelo aumento na passagem de ônibus e, embora no começo eu criticasse a quebradeira, ninguém com o mínimo de decência podia se manter contrário aos protestos depois de a polícia barbarizar tanto, a ponto de cegar um fotógrafo, de quase fazer o mesmo a uma jornalista, a ponto de vários amigos relatarem, acelerados de adrenalina, o percurso da manifestação, o epicentro da violência repressiva, a ardência do gás lacrimogêneo, a surra de balas de borracha. Mas eu não fui. Assisti com meu namorado pela televisão, no apartamento onde ele morava, no primeiro andar. Quis o acaso que o maior dos protestos coincidisse com nosso aniversário de namoro. Enquanto a multidão cobria as avenidas de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Brasília, suas sombras projetadas nos prédios vazios, nos prédios esvaziados, nós tomávamos cada um uma pequena taça de vinho, um de olho na tela e outro no jantar. Brilhava através da sala a imagem da multidão caminhando na Ponte Estaiada, em silêncio, porque desligamos o som para evitar os comentários, que no melhor dos casos eram insípidos. Esporadicamente, nós tirávamos do mudo, ouvíamos os gritos e os coros, tentávamos, de brincadeira, identificar amigos nossos no meio da massa. Ríamos, e daí nos calávamos por longos instantes, plenos e apreensivos. Às vezes eu espiava através da janela, receosa de ver subir os estilhaços de fumaça das granadas da polícia – e daí que os protestos estivessem muito longe, que a polícia estivesse contrariada, mas contida? Não conseguia me distrair, nem pensando na comida. Ficava imaginando meus amigos lá, e às vezes viajava, imaginando eu e meu namorado celebrando nossa data especial no meio da rua. De mãos dadas. Não nos beijaríamos, porque teríamos lenços sobre o rosto para não inalar as nuvens das bombas morais. Nada disso. Assistimos ao protesto debaixo de um cobertor, equilibrando os pratos no colo – longe da ação, e mais longe ainda da reação, fosse ela física, fosse mental. Não vimos as primeiras bandeiras do Brasil brotarem no meio da multidão. Não ouvimos ninguém cantar o hino nacional. Não engrossamos os gritos contra os partidos, nem forçamos pautas mais amplas, tão genéricas que neutralizariam o princípio ativo dos protestos. E muito menos nos acuamos diante da visão da galera na rua (não o povo, que nunca aparece, só é invocado, convocado, evocado). Pelo contrário: no dia seguinte, eufórica talvez por não ter ido, me dei conta de que nada mais seria o mesmo, de que uma coisa nova – para o bem e para o mal – começava ali, de que era preciso fazer jus ao tremor que tínhamos visto e sentido pela televisão, e também no ar, conversando com quem fora. Nenhuma aula foi suspensa naquela semana, mas nenhuma foi dada; que trabalho podia continuar igual, intocado, impávido, ignorante? Vimos na internet, ou algum amigo comentou conosco, que à visão de vidraças arrebentadas, das agências vandalizadas, da polícia de escudos erguidos, alguém resumira os últimos dias: há metafísica o bastante numa pedrada. Naquele mês, naquele ano, não pensei na minha mãe de preto me carregando no ventre; eu mesma tinha um protesto para ir ou não. Não fui, no fundo não senti que precisava ir; de algum modo, já estava lá. Ainda estou. Mesmo que sozinha.
Também preciso imaginar o último protesto a que não vou, a que quase irei, pois já terei morrido. Para vê-lo, e não apenas tentar adivinhá-lo, é preciso encontrar pontos de apoio. É preciso rastrear as referências que são comuns a nós, nesses três retratos. A cidade, por exemplo. Seus prédios e postes fazendo sombra aos manifestantes, fracassando em apequená-la. Mesma coisa com a rua. Larga, recapeada e iluminada, ou não, ela ainda oferecerá o seio para reunir a quase todos. Quando essa massa se aglutinar e eu já tiver morrido, talvez esteja fazendo sol. Mais provavelmente, será nublado. Pode até ser que chova nesse dia e que, na manhã seguinte, à ressaca da euforia coletiva se junte um resfriado, um princípio de gripe. Não importa. Vai ter grito. Vai ter violência. Vai ter polícia, vai ter baderna – muita baderna. São pontos de apoio muito confiáveis, assim como os motivos para o protesto. Saúde ameaçada. Educação ao léu. Desigualdade, canalhice, oportunismo. Não é que sejam naturais; o problema é que são persistentes. Nesse protesto do futuro, não interessa se vão usar as mais recentes novidades tecnológicas, muito menos se as táticas serão legítimas – a imprensa, se houver, que perca tempo com isso. De novo, a questão está nos pontos de apoio. Quem for a esse protesto depois que eu tiver morrido vai precisar saber de seus camaradas: onde estão, aonde vão, de quem fugir e para onde; quem enfrentar. A faixa etária será diversificada, ou nem tanto, mas com certeza o protesto contará com gente jovem, molecada. Terão pedras na mão e muitas ideias na cabeça. Haverá braços-catapulta e gargantas-megafone. Olhos e ouvidos se manterão alertas para qualquer movimento estranho, principalmente os hostis. Consigo imaginar um rapaz que sai do seu prédio, apreensivo porque o protesto passa perto de sua casa. Um ataque da polícia – o gás lacrimogêneo, ainda? as balas de borracha? os cassetetes? – o tomará por participante, assim consolidando sua vontade de se juntar à multidão. Ou podemos imaginar uma garota, que desce do metrô ou sobe a avenida a pé, menos apreensiva do que firme porque confia em si, confia nos seus, confia na própria força e na própria pauta. Isso se vê logo de cara: no rosto traz a tinta do momento, nas mãos o cartaz com a palavra de ordem, na voz o cansaço e a ira, anulando-se. Assim ela carregará os sinais de rebelião, que são sempre contagiosos e que resistem à passagem do tempo, pois sabem aguardar o momento certo de eclodir com potência máxima. O protesto pode ser o primeiro de muitos, o último de uma série ou uma irrupção inesperada, solitária e irradiante. Todos servem e, afinal, a imprevisibilidade é outro dos pontos de apoio. Talvez o rapaz e a garota estejam próximos na massa amotinada. Talvez eles caminhem juntos sobre cacos de vidro espalhados no asfalto como estrelas. Talvez atravessem nuvens tóxicas, ardentes ou irritantes, provavelmente ambos; segurarão as mãos? É bem possível que a polícia os bote para correr, assim como é possível que ela se junte aos manifestantes. Quem sabe? Num protesto grande como esse depois da minha morte, tão elétrico e atordoante, tão decisivo, meus átomos podem estar no vento, ou então no pó que sobe por causa dos sapatos dos manifestantes, correndo de encontro aos policiais, ou em fuga. Para imaginar uma cena dessas, é preciso encontrar pontos de apoio; por exemplo, o pó. A ele voltaremos, claro, mas não sem antes passarmos pela revolta.
Mais confiável de todos, ela é o ponto de apoio definitivo. Hoje, ontem, amanhã. É ela a verdadeira base. Sequer é preciso imaginá-la: nós a carregamos conosco para todo lado, nós a gestamos constantemente – e podemos dá-la à luz a qualquer momento.
Texto originalmente publicado no site da revista Época. Finalista do Prêmio Off Flip de Literatura 2019. Disponível também na versão blog desta newsletter.