Rabiscos em estado crítico #5: Em torno do Vampiro
Morte de Dalton Trevisan, aos 99, nos lembra que lê-lo é rápido, mas relê-lo é infinito
“Mas faltava tão pouco para os cem”, disse à minha esposa quando ela me contou do Dalton Trevisan. Como se a morte também gostasse de números redondos.
Na minha memória, os primeiros livros que li eram edições de bolso. Compradas em bancas. Coisa fina, literalmente: boa de ler no ônibus, boa de ler picada entre baldeações, boa de começar e nem chegar a interromper, já leu, num susto. Ler correndo.
Bobagem.
Em Dalton, só se lê rápido as letras, as linhas. Não é o ideal, mas acontece. Aí o primeiro engano: as entrelinhas tomam tempo. Tem que desencavar dali o ouro. Ou melhor: o corpo. (Tanta história escabrosa, e tanta elegância.) Corpo que se reconhece pelo dentinho de ouro na arcada, a reluzir. Quem passa rápido, nem percebe o que viu sem saber.
Quanto Dalton por descobrir. O das cartas. O das edições caseiras, artesanais, para amigos. O editor de revista. O leitor obsessivo de Machado. O detrator do Grande Sertão. O do dia a dia, ou o que se puder saber dele a partir de seus rastros. O Dalton sem mitos, salvo os da página.

O segundo engano: lidas as linhas, lido os silêncios, o texto ainda te lê. Dalton Trevisan é de ruminar, como escreveu Elvia Bezerra. Atento a cada frase. Tipo esta: “A chuva engorda o barro e dá de beber aos mortos.” A disposição exata dos B. Dos D. Os A que desaguam em três O seguidos: aos mortos. Da luz úmida da chuva ao escuro da sepultura.
E as imagens? A gula desse “engorda”. A sede desses mortos. Toda uma metafísica em onze palavras. Três verbos, três substantivos. Bashô no Hades.
“Chegarei ao hieroglifo!”, disse Guimarães Rosa em entrevista à TV alemã. O crítico de lá notava o encurtamento em progresso na ficção de JGR: romance, contos, microcontos.
Dalton chegou lá. Na vizinhança do hieroglifo, no mínimo: “Como dormir, se, para os mil olhos da insônia, você tem só duas pálpebras?”
Terceiro engano: a dança dos fragmentos, a ciranda de personagens. Linhas, silêncios, texto — mais contexto. Dalton Trevisan se lê horizontal, mas também verticalmente: esse João e essa Maria, mas como ligá-los a tantos outros Joões e Marias? Esse vampiro; esse pezinho grácil; essa penugem; essa sambiquira; esse punhal; mas quantos outros? São os mesmos, são outros, são ambos? A leitura é rápida. A releitura, infinita.
Nos anos 1980, Leminski defendia o livro mais recente de João Cabral de Melo Neto: e daí que se repete, que parece sempre a mesma coisa? Melhor para nós. O que se repete é sensacional. Novo mesmo.
Dalton escreveu por umas boas décadas. Mais de meio século. Se fosse o dobro, talvez Dalton reduzisse ainda mais suas obsessões. O que está além do hieroglifo?
Quarto engano: o meu. Se o registro não falha, a primeira coisa que li dele foi O Vampiro de Curitiba — edição que nada tinha de bolso. Só magra mesmo.
Mas me lembro da dúvida: ué, é romance? Conto? Ciclo de contos? Sei que me perguntava essas coisas bobas, com espanto. Hoje sou mais econômico. Deixei pra lá o espanto.
Dalton não iria ao paraíso. Fazer o quê lá? Seu além seria o limbo dos grandes escritores, uma espécie de biblioteca, com cadeiras estofadas, poltronas, longas mesas onde cabe qualquer um, menos aquele autor que você não tolera.
Dalton espiaria as estantes. Prateleiras vergadas com os livros que morreram só na imaginação. Obras mais que completas. Procuraria um cidadão específico, que encontraria folheando um volume de La Rochefoucauld.
— Machadinho!
À mão direita dele, o velho Rubem. Conversa com Otto Lara Resende, que ao ver o recém-chegado — vício de jornalista — quer logo saber daqui, de nós, de quem ficou.
– Vocês não perderam nada.