Esta é a segunda parte do conto. Se não leu a primeira, acesse a página da newsletter para acompanhar na ordem.
Foram dez anos turbulentos.
No primeiro ano, houve ainda prosperidade. Muitas caravanas não tinham pressa de se retirar. Negociavam com altas margens de lucro: quanto mais eram vendidas as últimas mercadorias, mais aumentava o preço das restantes. Diversos forasteiros reuniram a fortuna de suas vidas nos últimos meses, antes de retornar aos seus países.
No segundo ano, o reino foi atacado por salteadores, cobiçosos pelas caravanas repletas de dinheiro que partiam. Houve muitos ataques nas bordas do reino; tendo visto que, após a partida das caravanas, sobrava pouco a roubar por ali, os assaltantes foram se aproximando do centro da cidade. Com a notícia de que o rei comprava conhecimento a peso de ouro proliferaram os ladrões de livros e outros textos.
No terceiro ano se ergueu, com solidez, boa parte dos anexos da biblioteca real. Ainda chegavam novos volumes e papiros, mas já havia espaço para acomodá-los sem a necessidade de construir logo outros anexos; o ritmo da obra ficou mais devagar, e constante. O povo se encantou com os prédios. Tinha amplas janelas, mas pouco se distinguia no interior das câmaras. Um jogo de espelhos e vidros ora rebatia, ora absorvia a luz. Oficialmente, diziam que assim se preservaria o material abrigado, evitando o desgaste; outros diziam que era um artifício do rei para manter o homem da bolsa em isolamento, dedicando ao trabalho todo seu tempo.
No quarto ano, começaram as revoltas. Sem as caravanas, passado o encanto da biblioteca, o reino viveu a penúria. O ouro partira com os mercadores; o resto, com os ladrões. Enquanto isso, o rei gastava quantias cada vez maiores na aquisição de textos incompletos, incompreensíveis, inúteis – as prateleiras da biblioteca estavam cada vez mais cheias, e os pratos e os estômagos, vazios.
No quinto ano, as revoltas continuaram. Cresciam em violência. Propriedades reais eram apedrejadas; guardas, atacados; estabelecimentos, saqueados. Numa noite, incendiou-se um monte de livros no centro do paço. O rei ficou furioso: delegou ao carrasco a coordenação da guarda, dando-lhe carta branca para conter a violência do modo como preferisse. Assim foi feito. Enquanto isso, o homem da bolsa, escondido pelo jogo de espelhos, exausto, assistiu à chama consumindo os papéis, da noite à madrugada e à manhã. Sumiu por dias.
No sexto e sétimo anos, aumentou a ferocidade – não a das revoltas. A guarda real dobrou de tamanho, incorporando revoltosos com a promessa de alimento garantido. Começaram as rondas matutinas, vespertinas e noturnas. Cada membro da guarda tinha direito a uma arma de sua preferência e permissão para prender ou surrar malfeitores. Triplicou o número de detentos. A equipe do mestre de obras teve de ampliar a prisão.
No oitavo e nono anos, sem as caravanas, passado o encanto da biblioteca e minguadas as revoltas, houve quietude no reino. O ritmo das prisões ficou mais devagar, e constante. Poucos repararam que aumentou o número de desaparecidos. O carrasco se tornou chefe de defesa. O rei não adquiria novos textos, a biblioteca acumulava o maior volume já visto de conhecimento. Começou uma peregrinação de estrangeiros, encantados pelas lendas e pela vastidão da biblioteca. Percorriam as prateleiras, fascinados por tantos idiomas desconhecidos; mal podiam imaginar o que cada fragmento continha. Nenhum deles encontrou a segunda parte da lenda: um homem que conhecia cada detalhe dos textos e podia recitá-los na ordem que se lhe pedisse, comentando até as suas minúcias. Diziam ser uma sombra que vagava pelos corredores e anexos da biblioteca, entre livros e pergaminhos – às vezes se ouvia um cantarolar, que logo desaparecia.
Assim como o príncipe. Com a partida das caravanas, espalhou-se a lenda do homem da bolsa e sua canção mágica, que fazia crescer rostos. Mas, quando se percebeu que o sucessor do trono não aparecia em público, as versões se bifurcaram: uns diziam que o príncipe ganhara um rosto monstruoso; outros, que era um rosto precário, a durar apenas pelo dia ou pela noite; outros, ainda, que o príncipe mudava de rosto a cada dia, e que bem poderia estar junto a nós sem que o percebêssemos. Sabia-se que, independente da situação, o palácio e seus arredores eram grandes o suficiente para que se passassem não só dez, mas vinte, trinta, quarenta anos sem se ver o príncipe.
Ele havia crescido. Arisco. Caminhava pelos salões do palácio sempre com uma mão encostada nas paredes, guiando-se pela temperatura, pelas vibrações. Passava dias sem encontrar o rei e a criadagem. Quando voltava, viam-no do lado de fora da sala do trono, a cabeça encostada na parede. Depois, saía andando, arrastando a palma pelas pedras frias.
Foi por causa de um sumiço que se adiou a tão aguardada cerimônia do milagre, no décimo ano. Foram necessários três dias para encontrar o príncipe, escondido nos estábulos. Houve poucos preparativos: penduraram-se na sala do trono longas faixas de seda púrpura, e se estendeu um tapete grosso, dourado, da entrada até os pés do rei. Ao lado dele, colocou-se um assento para o príncipe. Nenhum criado pôde comparecer. O antigo carrasco tinha seu lugar garantido, e levou afiada a espada curva, que refulgia. Na sala, o som reverberava com nitidez e vigor: os passos dos guardas ressoavam tanto que parecia haver quinze pelotões marchando, quando nem chegavam a um.
O rei e o príncipe aguardavam calados.
Entrou o homem da bolsa. A diferença era evidente: mais magra a bolsa, assim como o corpo; as vestes, antes humildes, agora tinham um caimento perfeito, tão macias que se amoldavam aos movimentos. Sobre o peito se deitava uma barba longa, amarrada por duas fitas, que a dividiam em terços. Trazia os braços colados ao corpo, enquanto, na última vez, eles balançavam com o andar. Seus passos, delicados, não fizeram nenhum barulho – os anos de biblioteca lhe haviam ensinado o quão intolerável pode ser o eco de sapatos no deserto do silêncio. Ele alcançou o centro da sala do trono, no mesmo ponto de dez anos atrás. Fez uma reverência.
O rei havia sonhado com aquela cena das mais variadas maneiras nos últimos anos. Imaginava os instrumentos usados pelo homem, alaúde, flauta, tambores, harpas, cítaras. Nos dias mais ousados, inventava rostos para o filho, rostos infantis, adolescentes, adultos, idosos. Havia apenas duas constantes nos sonhos do rei: o desfecho e a sua alegria tornada felicidade – duradoura, definitiva.
A esperança resistiu até mesmo à visita do antigo carrasco na noite anterior. O rei espreitava a sacada do paço, insone. Um criado lhe disse que o chefe da defesa queria falar-lhe. Quando entrou o antigo carrasco, o rei o aguardava de frente à porta aberta da sacada. Era uma madrugada sem vento nem barulho, de luar frio, às vezes obstruído por grandes massas de nuvens.
– Majestade.
O rei concedeu que falasse.
O antigo carrasco agradeceu a confiança e a graça de uma posição tão nobre. Declarou-se abençoado por poder contribuir para a força e a glória do reino e contar com a benevolência de seu soberano. Pedia humildemente que vossa Majestade lhe fizesse outra graça: que lhe restituísse, apenas no dia seguinte, o posto de carrasco.
– Assim como vós, Majestade, sinto que continuaremos aquele dia de dez anos atrás. Saldaremos uma dívida em aberto – disse. – E, se todos voltam à posição anterior, apenas envelhecidos, também eu devo fazer isso.
O rei o permitiu. O carrasco lhe agradeceu e, antes de dirigir-se à saída, disse:
– Assim sendo, Majestade, reitero minha proposta: se são olhos, nariz e boca que o soberano quer para o príncipe, posso consegui-los. Mas meu método exige sangue.
Talvez tenha sido a lembrança dessas palavras que, na sala do trono, à espera do homem da bolsa, fez o rosto do rei contrair-se, como se o picasse um pressentimento. Ao seu lado, o príncipe seguia insondável – a pele lisa, um lençol por face.
O homem da bolsa a colocou no chão, na sua frente. Assim como da outra vez, tirou folhas dali, muitas mais do que há dez anos; ao contrário da outra vez, não retirou nenhum instrumento. O rei, o carrasco e os guardas viram o homem da bolsa esvaziá-la quando retirou o último objeto: um barbante.
O rei se inclinou. Seria possível extrair música de um fio desses?
O homem da bolsa fez o barbante atravessar pequenos furos nas bordas das folhas, numa série de pequenos nós que reuniam as páginas. Empilhadas, chegavam à altura de um polegar. O homem abriu o conjunto de folhas, virava-as adiante e para trás, concentrado; percorria linhas, algarismos, desenhos, pautas e páginas em branco com o mesmo afinco. Era grande o silêncio, mas não maior que a expectativa do rei.
– E então?
–Majestade, ordenastes que vos entregasse o milagre em sua inteireza depois de dez anos de estudo, embora eu vos tivesse alertado de que levaria ao menos o dobro do tempo. Foi o primeiro obstáculo. Houve outros: privações; insurreições; perseguições; peregrinações. Mas dei minha palavra. Nesta década, atravessamos mais do que obstáculos; foi-me concedido também consultar as páginas mais sábias já escritas pelos povos conhecidos. Singrei pergaminhos, devorei papiros, assimilei tabuletas e digeri relatórios, em busca do segredo que permitiria dar ao futuro rei um rosto humano. Não posso precisar quando notei que, embora possível, repisar o caminho do milagre anterior era pouco frutífero, ainda mais com apenas dez anos. Desviei a rota que me havia traçado, mas com que alegria percebi que a nova estrada era muito mais segura e definitiva! É por isso, vossa Majestade, que não vos apresento uma canção, como antes, e sim este volume.
O rei segurava um dos braços do trono com a mão, a outra apoiada na própria coxa. Estava arqueado e com o olhar fixo no homem da bolsa.
– Majestade, já reparastes que uma canção se cala junto com quem a canta? Que a música sempre volta ao silêncio inicial, assim como um salto retorna ao chão? Se eu quisesse, Majestade, poderia atrelar o rosto de vosso filho à minha voz e aos meus dedos. Faria suas feições brotarem da minha inspiração momentânea, e me aproveitaria da vossa devoção para garantir uma posição vitalícia em vosso reino. Mas não, Majestade: pedistes um milagre íntegro, é o que vos entrego. Este volume é uma espécie de canção. Sim, é muda; porém, independe da boa vontade de um cantor qualquer. Se a música se apoia no corpo individual de um menestrel, dele brota, esta canção está liberta. De mim, de vós, do povo, mesmo do príncipe. Inscrita com tinta, ela se reproduz de modo perpétuo, seja para quem a lê, seja para quem a repete depois de a ter ouvido lida. Não ofereço ao príncipe um salto, Majestade, mas a capacidade de voar, e isso independe da força dos próprios pés. Basta que haja vento, como sempre há.
Então o homem da bolsa leu em voz alta trechos das folhas atravessadas pelo barbante. Eram narrativas em que o príncipe viajava por reinos distantes e alcançava prodígios; conhecia os confins do mundo e os mais diversos seres, dos piolhos subterrâneos aos bois celestes que moviam os astros; apaixonava-se por sucessivas princesas e ganhava a amizade dos mais valorosos guerreiros e guerreiras; valia-se de inteligência, destreza, honradez, coragem, humildade. Conforme o homem da bolsa lia, ficavam as mais variadas impressões do caráter do príncipe e, pela mera força das palavras ouvidas, parecia que dentro da mente de cada um se formava uma face onde todas as qualidades se encaixavam. Não dava ao príncipe um rosto, mas vários – e eles dependeriam não dos traiçoeiros raios de luz absorvidos pelos olhos, facilmente enganados por ilusões de ótica e jogos de espelho, e sim das vibrações produzidas quando tocamos a imaginação e a memória de quem ouve. Assim justificou o homem da bolsa, após ler alguns dos episódios presentes no volume.
Ao fim da leitura, o rei estava novamente reclinado no trono; só o pescoço não tocava no estofo de seda. Mais silêncio. Dessa vez, o rei não havia trocado olhares com ninguém, fosse da guarda, fosse o antigo carrasco; sequer olhara o filho. A ausência de ruídos se tornava cada vez mais espessa. Os barulhos e murmúrios da cidade não chegavam à sala do trono, que parecia uma câmara de eco, como se a própria quietude reverberasse, redobrando seu peso.
– Majestade, concedei que eu acrescente que –
– Basta – disse o rei. Fez menção de se levantar, mas permaneceu recostado. – Por dez anos te mantiveste sob minha proteção. Não te faltaram comida, bebida ou abrigo. Mais que isso: tiveste o privilégio de custearem tua jornada ao saber. E é isso que me entregas? Não precisei nem passar os olhos no rosto de meu filho para constatar ali a lisura, idêntica, um campo nevado e estéril. Entregas-me malogro, e não consigo me decidir se és um fracassado, um trapaceiro ou ambos. Podes justificar teu insucesso com as belas palavras que deves ter aprendido na biblioteca montada para ti por mim, mas meu olhar de pai e rei vê através de tuas miragens. É nítido teu embuste. Tenho diante de mim outro doutor, outro charlatão, entre os tantos que foram desmascarados no exato ponto em que estás. Afirmas que dás a meu filho uma miríade de rostos, no entanto ele estampa pele pura e plana; e, pior, tu ainda me trazes um volume infestado de mentiras, pois o menino jamais pisou fora do palácio. Tua falta de êxito é colossal, e tua insolência a agrava.
O rei se ergueu. Viu o carrasco tomar da espada curva, mas com um gesto o deteve.
– Matar-te me parece pouco. Por demais rápido, no mínimo. Que seja misericórdia minha, ou receio de igualar-me ainda mais aos chefes visitantes, que também confiaram em seus charlatões; de todo modo, prevalece o dever e, no caso, também o desejo de te punir. Tudo que te foi concedido te será tirado. A partir de agora, estás banido da biblioteca e de quaisquer outras que nos tenham servido de fonte; teu nome e tua marca sobre ela serão apagados dos registros públicos; não mais pisarás a cidade; estás condenado a ser repelido mesmo das bordas do reino, e nisso vem a calhar que já te despediste de família e amigos. Da próxima vez que pisares nesse palácio, serás imediatamente encarcerado numa cela especial, construída às vistas da biblioteca, para a contemplares até a morte. Considera teu volume confiscado; caso retornes, tu o verás ser destruído numa fogueira acesa para ele e para todos os livros, pergaminhos, papiros, tabuletas e relatórios que tocaste. Sim, a morte para ti é muito doce, muito fácil e muito rápida. Que a guarda te expulse deste palácio, não sem antes surrar-te duas, quatro, oito vezes, para que não mais consigas pensar, lembrar e recitar com nitidez o que aqui aprendeste.
Às ordens, seguiu-se uma confusão, logo contida pelos guardas. Antes de mandar embora a todos, o rei recebeu dois olhares em meio à balbúrdia: um, pungente, do homem da bolsa; outro, de frustração, do antigo carrasco.
O príncipe, por sua vez, já sumira de novo.
Esta é a segunda parte do conto. À moda dos folhetins, e para não entupir a caixa de entrada ou a boa vontade alheias, ele será publicado ao longo das próximas semanas. Se não quiser perder as próximas partes, inscreva-se já:
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