Kurt Wolff e Roberto Calasso: o editor entre modéstia e mística
Seus livros na mesma coleção da Âyiné não poderiam contrastar mais na imagem que oferecem do trabalho do editor literário
Nunca ouvi a voz de Kurt Wolff, e com certeza não a entenderia porque não falo alemão, mas a julgar por seu Memórias de um Editor, imagino-o falando baixo. Um homem discreto, talvez; cioso da qualidade do seu trabalho e da justeza dos contratos com os autores que publica. Não falta mea culpa nesse livro, como quando Wolff lamenta não ter convencido um autor de seu catálogo a desistir de publicar uma sátira tão fraca quanto injusta contra o célebre Karl Kraus. Ou quando reconhece ter falhado em não investigar um pouco mais a fundo quem era aquele estranho professor de Trieste que em 1920 lhe propunha a versão alemã de um livro escrito em inglês, um tal James Joyce. Quem lê não sente estar diante do primeiro homem a apostar dinheiro na obra de Franz Kafka – um feito editorial que parece muito superior a descobrir Joyce, pelo simples fato de que, ao contrário do autor de Ulysses, o de A Metamorfose estava desesperado para não aparecer. Wolff mal faz alarde; narra seus encontros e correspondências com Kafka quase que de passagem, de modo casual, despretensioso. Mais um dia de trabalho.
Curiosamente, na mesma Âyiné que publicou Memórias de um Editor, aliás na exata mesma coleção deste livro (Das Andere), saiu também uma espécie de antípoda: A Marca do Editor, de Roberto Calasso. Longe da despretensão de Wolff, o italiano investe numa extravagância exuberante, aqui e em outros de seus livros, a exemplo de Como Organizar uma Biblioteca ou seus ensaios sobre mitologia grega (As Núpcias de Cadmo e Harmonia), hindu (Ka) e kafkiana (K.) – todos estes quatro pela Companhia das Letras. Para Calasso, cabeça da grande editora Adelphi até sua morte em 2021, o trabalho de publicação seria em si uma forma de arte: cada título, cada autor, cada "livro único" representaria um elo de uma grande obra, assinada pelo editor. Calasso a compara a uma espécie de serpente encantatória, como a píton que Apolo flechou no lugar onde fundaria o oráculo de Delfos.
Esse contraste de posturas aparece na linguagem de cada um. A começar pelo nome das editoras. A de Kurt Wolff não poderia ser mais direta: o nome dele, e pronto. Embora não tenha fundado a Adelphi, Calasso estava lá desde seu início, e com certeza não torceu o nariz para o eco grego, com seu ar de mistério sagrado, de iniciação ritual.
Se os nomes das editoras sugerem a diferença de posturas, os respectivos estilos de texto a consolidam. Tanto Memórias de um Editor quanto os livros de Calasso tendem ao fragmentário, mas por motivos totalmente distintos. O livro de Kurt Wolff é em si o trabalho de um editor, de um terceiro, alguém que reuniu um conjunto heterogêneo de textos de ocasião e comentários, mais um anexo com trechos de diários costurados numa cronologia que chega a um teor biográfico. Lendo-os, fica a impressão de que Wolff não teria tempo nem disposição para a escavação pessoal que a escrita de suas memórias representaria: as anotações de diário são rápidas, sintéticas, às vezes apenas as palavras-chave ou o registro de uma publicação, uma dissolução comercial, a fuga da Alemanha, e da França, e da Europa em guerra. Uma escrita prática, imediata, essencial.
Calasso, por sua vez, não consegue esconder que seus fragmentos foram assim pensados, elaborados, polidos e montados. Misturando narração e digressão, emulando a associação livre de uma mente que transitasse com fluência entre o sânscrito o alemão o italiano e o francês, Calasso busca uma recriação da experiência do transe no leitor, como que hipnotizado pela densidade do texto. Nenhuma referência ou informação ali é elementar; tudo se reveste e se adensa, como ondas num mar revolto que podem puxar para o fundo quem se aventurar nela despreocupado. No fim de O inominável atual, por exemplo, a tecnologia, a crise dos mediadores pela internet, o terrorismo, o recalque da dimensão do sacrifício (inerente à sociedade) pela civilização ocidental, tudo isso converge para um fragmento de Baudelaire que soa como uma antecipação do atentado de 11 de setembro. O poeta francês tornado pitonisa.
As diferenças se aprofundam ao se observar como Wolff e Calasso abordam Karl Kraus, sua obra, sua figura.
O italiano exibia na sua estante mais cara (em mais de um sentido) sua coleção completa do jornal Die Fackel, escrito apenas por Kraus ao longo de décadas, onde satirizou a degradação da língua alemã em Viena, a psicanálise, seus desafetos e às vezes seus discípulos. Para Calasso, o ouvido atento de Kraus parecia discernir a catástrofe iminente do nazismo; seria quase um profeta escrevendo no seio da mídia de massa, contradição aliás ao gosto do italiano.
Já para Wolff, Kraus era um "justo", no sentido bíblico, uma pessoa com aguda noção do que é certo e a incapacidade de contemporizar os erros, de abafá-los. Nas páginas que lhe dedica em Memórias de um Editor, Kraus interessa como uma pessoa, um ser humano, que em vida despertava nos seus contemporâneos ou a admiração absoluta, ou o ódio profundo. Wolff reconhece que Kraus poderia ser encantador, e uma pessoa muito difícil. Sus palavras sempre acertavam o alvo, diz Wolff, mas às vezes ele errava o peso, a carga, a virulência do ataque. Um artista e um ser humano, só.
Para que me alongar? Talvez nada fale mais alto que os próprios títulos dos livros: Wolff escreve as memórias de um editor, enquanto Calasso se preocupa com a marca do editor. Artigo indefinido para Wolff, com seu valor de experiência comum, quase trivial, ao rés-do-chão, com os pés em terra firme e a clareza no olhar. Artigos definidos em Calasso, que busca o único, o singular, o exclusivo, as alturas excelsas da linguagem, coisa de quem se acha, como o chamou a Paris Review, "uma instituição literária de uma pessoa só".
Qual deles terá apreendido melhor o lugar do editor? O modesto ou o místico? Talvez, combinados, se complementem. Ou se anulem. São duas respostas possíveis a um mistério que nem uma postura nem a outra estão seguras de ter decifrado, o mistério que de fato importa: como seduzir um leitor.
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