Ou acabamos com a internet, ou ela acaba conosco
Em "Terra Arrasada", Jonathan Crary não mede palavras contra a rede, vista como braço virtual do capitalismo tardio e sua exploração desenfreada
Se a internet é o ar que respiramos, Jonathan Crary só vê poluição. No seu livro anterior, 24/7: Capitalismo Tardio e os fins do sono, o ensaísta norte-americano criticou o modo como as pressões econômicas dominavam todos os aspectos de nossa vida, inclusive o tempo que dormimos – que está com as horas contadas, segundo Crary. Agora, com Terra Arrasada, ele se volta para nós, para mim e você, para aqui mesmo onde estamos conversando: a internet.
Publicado pela Ubu, Terra Arrasada é um ensaio em três capítulos que busca demonstrar uma ligação entre a rede e os vários colapsos iminentes que vivemos: de saúde mental, de meio ambiente, de solidariedade social, etc. A internet seria indissociável do capitalismo tardio, seu braço digital, seu prolongamento para dentro de nossas casas e mentes. Nesta crítica, Crary mira sobretudo os apologistas dela, que a veem como uma ferramenta democrática e democratizante “apesar do mau uso”. Para o autor, os pesos estão invertidos – o mau uso é a regra, e as exceções, cada vez mais raras.
O tom do livro parece se transformar ao longo dos argumentos. Sai da incisividade, quase da ira, e chega a uma melancolia meio desesperada. Isso transparece nas próprias frases.
“Se for possível um futuro habitável e partilhado em nosso planeta, será um futuro off-line”, abre o livro. “Viver em um mundo que não seja dominado pela internet, [dirão], significaria ter que mudar tudo. Sim, é exatamente isso” (p. 16), lemos mais adiante. “Hoje, o complexo internético é o aparato global absoluto para a dissolução da sociedade” (p. 24). “Eis uma verdade irrefutável: não existem sujeitos revolucionários nas redes sociais.” (p. 31). E: “A internet é o equivalente digital da ilha de lixo que se expande rapidamente no Oceano Pacífico” (p. 70). Etc.
(Frases perfeitas para instagramar ou tuitar, se a hipocrisia permitisse.)
O tom indignado não impede que Crary se apoie em argumentos de gente graúda: Guy Debord, Rosa Luxemburgo, Franco Berardi, entre muitos outros. Todos eles intelectuais que mantêm a desconfiança e um olhar crítico o tempo todo, sem propor retrocessos tecnológicos ou sociais. Pelo contrário.
Mas talvez nem o tom, nem as autoridades sejam o ponto mais convincente de Crary. Me parece que sua posição ganha força em dois momentos.
Primeiro, quando ele nos lembra o tamanho do impacto ecológico da internet e todos os aparelhos relacionados: extração de cobre; pegada de carbono; produção de energia elétrica para fazendas de servidores... Crary desmonta a metáfora da “nuvem”, do “imaterial”, e mostra o chão de terra ou de fábrica que elas querem mascarar. Me fez pensar na imagem clássica do manguebeat: uma antena parabólica enfiada na lama. Só que, no caso, uma lama tóxica, como a de rejeitos que engoliu Mariana e Brumadinho.
Segundo, Crary se mostra bastante persuasivo na análise que faz do achatamento da experiência que a internet implica. Estudioso da percepção, da estética, da pintura e das mídias, ele condena a perda (inclusive literal) de dimensões quando a vida se reduz à tela. A voz, o olhar e a presença foram matéria de infinita sondagem por artistas ao longo de séculos, em uma infinidade de obras-primas, diz Crary, e agora se quer colonizar essa experiência humana por meio de tecnologias como rastreamento da movimentação do globo ocular e biometria da íris. Tudo pela monetização.
Limites do leitor vs. limites do livro
Preciso admitir que, durante boa parte da leitura, me esforcei em discordar de Crary. Razão muito simples, muito comum: vivo na internet há décadas. Quanta coisa e gente não descobri nela? Quantas ideias fascinantes ela não me revelou? Quem se lembra da comunidade Discografias no Orkut, ou mesmo quem já teve de baixar legendas de séries e filmes obscuros, criadas de modo colaborativo, sabe do que estou falando.
Mas aí está a magia da leitura: você não precisa concordar para reconhecer um argumento sólido. E, lido o livro, do lado de cá dos mais de 25 anos de internet comercial, nestes anos pós-NSA, pós-Cambridge Analytica e pós-eleições de 2018, parece certo que, mesmo se Crary não tiver toda a razão, ele tem boa parte dela.
Na verdade, eu diria que os limites dos argumentos de Crary estão em outro lado. Nas bordas, talvez.
Acho que ele consegue se desviar bem do risco de soar ludita ou irreal. Também acho que, embora a gente saia de seu livro se perguntando como seria possível desfazermos o castelo de cartas digital sem cairmos lá de cima e nos espatifarmos, essa demanda prática não cabe ao livro. Seu fim é nos fazer pensar. E consegue.
O verdadeiro limite está em algo que se explicita na apresentação, insinuando-se por boa parte do livro. Diz Crary que “é no Sul global, onde o espírito de revolta nunca foi derrotado, que os caminhos mais relevantes para um mundo pós-capitalista estão sendo forjados” (p. 11). A ideia é linda. Mas será que não trai um resquício romântico?
Afinal, virando do avesso o argumento, aplicando a mesma desconfiança crítica do resto do livro, também podemos afirmar que no mesmo Sul global estão sendo forjados outros caminhos muito relevantes para um mundo pós-capitalista – para pior.
Crary cita alguns especialistas que afirmam a insustentabilidade do modelo de hoje, para o bem ou para o mal, mas parece não conectar esse ponto – não de modo consequente, prolongado – com o potencial danoso que também estaria no Sul global, talvez justamente pela permanência desse mesmo espírito de revolta, contra o qual se organizaria a repressão.
Nem é preciso queimar o filme do resto do Sul global. Basta o Brasil, onde até há pouco o governo estava infestado de especialistas em terra arrasada. Este imenso laboratório de ar poluído, digital ou literalmente. Se bobear, o título do livro de Jonathan Crary poderia estar na nossa bandeira – mais um motivo para você ler o quanto antes.
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Se a ideia ou a abordagem de Crary te pareceram interessantes, você pode gostar dos outros livros da coleção Exit, da Ubu. Dela, já escrevi sobre Happycracia, de Edgar Cabanas & Eva Illouz, e sobre a coleção como um todo. Esses textos saíram pela primeira vez no Globo e no site da revista Época, respectivamente.
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