O que Homem-Aranha e o Aranhaverso têm a ver com Lévi-Strauss?
Não sei se super-heróis são a mitologia de hoje, mas garanto que a animação de sucesso usa ferramentas da antropologia para desenvolver seus personagens
A ideia aparece de modo claro em Corpo Fechado (2000), de M. Night Shyamalan: os super-heróis seriam a versão moderna da mitologia, os Aquiles e Ulisses que nos cabem. E onde há mitologia, reconhecida ou não, há um antropólogo na cola, seguindo-a de perto como os detetives de chapéu e sobretudo, estilo filme noir.
Estava pensando nisso ao sair de uma sessão de Homem-Aranha: Através do Aranhaverso. Não tanto pelo filme em si, mas por aquilo que ele prolonga do anterior, sem dúvida a melhor adaptação do Homem-Aranha já feita. E olha que não foi por falta de tentativa, teve uns dez filmes em vinte anos.
Comentaram muito a ousadia de Homem-Aranha no Aranhaverso ao escalar como protagonista Miles Morales, um jovem negro e de origem latina, em vez do (literalmente) surrado Peter Parker. É verdade. Mas essa leitura me parece deixar de lado outro aspecto, tão ousado quanto, se não mais. Ele tem a ver com a estratégia narrativa do filme e com aquele aspecto “mitológico”, “antropológico”, que mencionei.
Em resumo, eu diria que Homem-Aranha no Aranhaverso tem sua maior ousadia ao conciliar dois modos aparentemente incompatíveis de desenvolver personagens. Um mais convencional, ligado à psicologia, e outro diferente, não sei se mais arcaico ou mais contemporâneo, ligado à antropologia. Antes de armar a teia, exploremos cada fio.
Modo 1, o convencional: a psicologia das personagens
É um ângulo bem estabelecido, meio inescapável. Personagens de ficção seriam recriações literárias ou cinematográficas que imitam pessoas, um recorte delas, e o público se conectaria por meio de uma identificação emocional. Assim como na nossa vida nós somos tocados por tristeza, indecisão, alegria, ansiedade e coragem, também as personagens – sobretudo protagonsitas – estão submetidos a conflitos internos. Vemos seus dramas e nos projetamos nelas, criando uma ligação.
Em Homem-Aranha no Aranhaverso, isso aparece por exemplo na relação entre Miles, seu pai e seu tio. Os três amam uns aos outros, mas também têm diferenças de perspectiva: o pai é mais centrado e controlador; o tio dá mais vazão à criatividade, mas se envolveu com o crime; Miles tenta se entender entre esses dois modelos. Cada personagem tem seus valores, às vezes conflituosos dentro de si e na relação deles com o mundo. Mais do que as ações ou relações específicas das personagens, espera-se que o público se reconheça nesse conflito entre aquilo em que acreditamos e aquilo que fazemos. Arroz com feijão do desenvolvimento dramático.
Até aí, Homem-Aranha no Aranhaverso não traz nada de novo. Já estava tudo lá no gibi original dos anos 1960. Nem foi outro o motivo do sucesso do herói, pois era um dos mais “pé-no-chão”, mais próximo do universo dos leitores: a idade escolar e os dilemas de qualquer jovem facilitaram a identificação com o personagem, que nele se viam espelhados. Representatividade importa, não é assim que dizem?
Sim, Miles Morales vem de uma família e um meio multicultural distintos daquele de Peter Parker. Mas a lógica da narrativa se mantém: você também não se sente em conflito consigo, igual este protagonista?
Acho que a verdadeira novidade está no segundo modo de desenvolvimento. Mas ele exige um rápido desvio, por dentro de um ensaio de Claude Lévi-Strauss.
A lógica mitológica e o método para desvendá-la
Todo mundo sabe que Claude Lévi-Strauss revolucionou a antropologia com seu método estrutural de investigação das sociedades. Não cabe aqui entrar em detalhes; basta chamar a atenção para um texto chamado “A estrutura dos mitos”.
Nele, Lévi-Strauss propõe uma maneira diferente de compreender essas narrativas, que funcionariam como modelo de sentido para organizarmos as nossas vidas. Em vez de buscar a “moral da história” dos mitos, em vez de dissecar a história sozinha, o antropólogo defende que entendamos essas narrativas fundamentais a partir do que ele chama de mitemas. Seriam as unidades fundamentais dos mitos, assim como os fonemas e morfemas seriam as das palavras (Lévi-Strauss aproveita muitas ideias da linguística).
Lévi-Strauss não deixa muito claro no ensaio como identificar os mitemas, como dividir uma determinada história nessas unidades fundamentais. Mas seu método fica bem evidente. Seu principal exemplo é o mito de Édipo, analisado de modo inovador.
Ele reparte o mito de Édipo em alguns “nós” fundamentais: Édipo mata a esfinge; Édipo mata o pai; Édipo casa com a mãe, por exemplo. Lévi-Strauss também conecta esse mito às outras narrativas de que ele faz parte, como o destino dos filhos de Édipo – dois irmãos matam um ao outro; a irmã Antígona tenta dar um funeral digno a um deles, mas isso acaba em tragédia – e de um antepassado, Cadmo, que mata um monstro na região. Lévi-Strauss então dispõe esses “nós” fundamentais numa sequência, que ele lê tanto “na horizontal” quanto “na vertical”, como se fosse uma partitura.
E, da mesma forma que se pode mudar uma música de tom sem alterar a relação entre as notas, ou da mesma maneira que se pode improvisar melodias em cima de uma música sem desafinar, apenas respeitando seu campo harmônico, os mitos podem variar na sua forma, mas manter a sua estrutura, as suas correspondências internas. Aquilo que os organiza. Sobretudo, a sua forma de dar sentido para as coisas. É a gramática do mito que está na mira de Lévi-Strauss. Ele sugere a possibilidade até de inverter os mitemas. No caso de Édipo, “matar o pai” teria uma relação equivalente a “casar com a mãe”; seriam simétricos invertidos, dois excessos inaceitáveis – um de violência, outro de amor – diante de parentes. Muda o fato, mas a relação, a proporção, é similar. A está para B como X está para Y. 4 para 2 como 16 para 8.
E onde entra o Homem-Aranha nisso?
Modo 2: a mitologia das personagens
Um dos motivos pelos quais tanta gente aproximou os super-heróis da mitologia dos gregos ou de outros povos está no seguinte: quando um ateniense ou um tebano (ou espartano, ou micênico, ou sei lá) via uma peça baseada num mito, ele já sabia a história. Lá vai o Édipo descobrir que a mulher dele é a mãe... A graça não estava em se esquivar dos spoilers, em se surpreender, mas em observar as variações, os acréscimos, as inversões que se fazia na história conhecida e que deviam respeitar a lógica profunda dos mitos. Queriam ver como o dramaturgo entregava a mesma coisa, mas diferente.
Compare o Miles Morales de Homem-Aranha no Aranhaverso e a história clássica do Peter Parker. Podemos lê-las como variações de um mesmo mito – diferentes, mas análogos.
Em ambos, um jovem comum, por acaso, cai numa situação extraordinária (é picado por uma aranha). Tem uma diferença: Miles não é órfão como Peter. Mas, olhando de perto, você percebe que os pais de Miles equivalem à tia May – ambos representam o desejo do herói por uma vida normal, cotidiana, doméstica, que exclui seu lado “extraordinário” (pois não podem descobrir sua identidade secreta). E o lado “ordinário” se complementa com uma outra figura familiar, que tem uma morte trágica, evitável, pelas próprias ações dos heróis (a vida extraordinária invade a ordinária). Em ambos, o tio: Aaron, de Miles, e Ben, de Peter.
Um exemplo mais rápido: os dois nomes dos super-heróis são aliterativos, começam por uma mesma consoante – M e P. A letra pode mudar, desde que a regra se mantenha.
A sacada de Homem-Aranha no Aranhaverso era imaginar uma série de outras variações possíveis dentro dessas coordenadas do herói. Peter Parker mesmo seria só mais um. Apenas mais uma versão, em meio a um Homem-Aranha que é um porco de desenho animado, ou um anime de uma mocinha com um exoesqueleto aracnídeo, etc. O que faria de alguém o Homem-Aranha não é ser branco, nem nerd, nem homem, nem aranha, nem ser humano, e sim o fato de que se encaixa numa equação parecida com esta:
personagem é pessoa comum + acidente a torna incomum + sua excepcionalidade provoca a perda de um ente querido + a perda leva a um senso de responsabilidade + o herói tenta se equilibrar entre a vida ordinária e a extraordinária + a vida ordinária exige sacrifício da extraordinária, e vice-versa = Homem-Aranha.
Em Homem-Aranha: Através do Aranhaverso, brinca-se com essa ideia por meio da figura do cânone. O antagonista zela por eventos canônicos, garantindo que aconteçam coisas como a perda de uma figura querida quando o herói tenta salvar a todos, buscando evitar sacrifícios. Se esses eventos canônicos não ocorrem, todo o universo do Homem-Aranha em questão periga entrar em colapso. Nos termos de Lévi-Strauss, a estrutura da história se desfaria. Sai o mito do Homem-Aranha e entra outra narrativa.
Faz sentido, diria Lévi-Strauss, tirando o sobretudo e o chapéu de detetive enquanto se esgueira para dentro de uma sessão de cinema, com um gibi debaixo do braço.