"A melhor crítica alia atenção formal e discussão social", diz Gabriel Trigueiro
Autor de "Cinéfilo nem é gente" fala de sua admiração pela comédia como gênero, da obsessão por Paulo Francis e dos problemas de se ver filme em casa (e fora também)
André Bazin pedia à crítica de cinema o que se devia esperar de todas as outras críticas: um mínimo de inteligência, cultura e honestidade. Só não é a fórmula perfeita porque daria para acrescentar um quarto ingrediente, não sei se essencial, mas sempre bem-vindo — o humor.
As quatro coisas aparecem em doses mais do que fartas em Cinéfilo nem é gente (Sapopemba), de Gabriel Trigueiro. Autor da newsletter Nada de Errado Nisso com João Luís Jr. e de resenhas e ensaios n’O Globo e na Folha de S.Paulo, Trigueiro reuniu textos sobre audiovisual (cinema, TV, streaming e tudo que cabe entre uma coisa e outra) nesse seu livro de estreia, cujo título já dá o tom de provocação tão bem-humorada quanto apaixonada.
Cinéfilo nem é gente reafirma uma perspectiva muito particular e interessante sobre a cultura contemporânea, que Trigueiro tem desenvolvido desde quando escrevia para o site da finada revista Época. Mesmo com o recorte específico de filmes e séries, dá para perceber que seu olhar transita por política, tensões sociais, questões de raça, classe e gênero — comentadas com desenvoltura e inteligência. E mais: ele nunca perde de vista o fato aparentemente elementar, mas tão esquecido, de que filmes (e etc.) se fazem com imagens; literatura, com palavras; música, com som, etc., etc. Análise formal e comentário social se articulam, em vez de se anular na disputa por primazia. Coisa fina, e infelizmente rara.
Trigueiro topou responder algumas perguntas minhas por e-mail. Falou sobre a diferença entre a maneira ideal e a conveniente de se assistir às coisas hoje; seus modelos de crítica; a comédia como “a manifestação mais sofisticada e intelectualmente interessante do espírito humano”; a relação entre Max Nunes e S. J. Perelman; etc. Para quem ainda não leu o livro nem sua newsletter, é uma ótima amostra: faz rir muito, e pensar ainda mais.
Já na capa do seu livro aparecem distintos suportes materiais: cinema, TV, streaming. É uma das tensões decisivas pro audiovisual hoje, desde os esforços para as pessoas voltarem às salas de cinema até os efeitos que a internet tem na linguagem audiovisual. Como você se detém mais nos comentários formais das obras, surge essa curiosidade de “bastidores”: como você prefere ver esses filmes e séries? Consegue assistir frequentemente do modo que prefere? Sente muita diferença na experiência, tanto de ver quanto de rever, segundo o suporte? Em outras palavras: acha que o “canal” onde vê afeta a própria reflexão?
Num mundo ideal, eu assistiria a todos os filmes que me interessam apenas no cinema. De preferência no Cine Odeon, a minha sala favorita da vida. Para quem não conhece, é um cinema de rua art déco, inaugurado em 1926, localizado no Centro do Rio de Janeiro. O bicho é lindão, tem cortina, gongo, o diabo. Por outro lado, aquelas salas VIPs de shoppings são muito bem-vindas. O que não têm de charme, compensam no conforto. E embora cobrem ridiculamente caro no ingresso, já sou um jovem senhor, e não economizo mais com esse tipo de negócio. <<Narrador: este homem jamais economizou com o seu próprio conforto>> Mas, veja, se por um lado o cinema ainda hoje soa como o lugar mais adequado para se assistir a qualquer coisa, pessoalmente aprecio muito o aspecto litúrgico do evento, por outro lado a vida em sociedade nesse tipo de ambiente, e a tentativa de civilidade nesse tipo de contexto, me parece cada vez mais custosa e aborrecida. Usam o celular durante os filmes, falam alto, enfim, o ser humano não é fácil. Então, assim, a ida ao cinema é uma experiência, para dizer o mínimo, ambígua. Acabo recorrendo, como talvez o grosso da população de classe média dos grandes centros urbanos, às plataformas de streaming. Basicamente por comodismo, é claro: a limpeza do meu banheiro é impecável, o meu sofá é confortável e a minha sala é silenciosa. Mas a verdade é que, como consequência dessa escolha, fico refém dessas plataformas, e me submeto a uma dieta cultural cada vez mais filistina, na qual a Era de Ouro de Hollywood parece ter começado na década de 1980, com, sei lá, Curtindo a Vida Adoidado. Mas nada contra.
Ainda sobre suportes materiais, os seus textos também passaram por isso, da internet e da imprensa rumo ao livro. Você escreve que mudou de opinião sobre alguns juízos de filmes ou séries, mas e em relação à linguagem, à estrutura, à própria organização dos seus textos? O gesto de recolher em livro mudou sua percepção deles, ou não? Notou obsessões, ganchos por expandir, surgiram ideias novas?
Quando você modifica a plataforma em que um texto está inserido, de algum modo você altera a percepção a respeito daquilo que está veiculado. Lembra daquele papo de “o meio é a mensagem”? Pois então. Reunir material que estava disperso na internet, ou mesmo em veículos jornalísticos grandes, como Folha de S.Paulo e O Globo, talvez tenha dado uma dignidade literária maior aos argumentos desenvolvidos. É um processo mais ou menos análogo ao que ocorria com os romances publicados no século XIX. Primeiro saíam serializados, como folhetins na imprensa da época, até que, dependendo do sucesso crítico e comercial, ganhavam uma edição literária. Gosto da forma como os textos de Cinéfilo nem é gente estão organizados, fruto de decisões editoriais do Mauro Albano, meu editor. A alternância entre os ensaios de maior fôlego e as notas mais breves beneficiou demais o ritmo da leitura. Aliás, gosto do fato de que embora ela não precise ser linear, também funcione dessa forma, se por acaso for essa a sua intenção, você quem sabe. Quer dizer, os textos, pelo menos na maior parte do tempo, conversam entre si. Alguns temas são revistos, às vezes aprofundados, e a coisa toda tem uma unidade estética e discursiva bonita que só. Mas eu sou suspeito, né, imagina.
O seu livro parece se organizar a partir de algumas tensões internas. Algumas são mais assumidas (imprensa x academia, agilidade x densidade, provocação x reflexão), mas parece haver outras menos explícitas. Por exemplo, seriedade x riso. Você fala de muitos filmes, séries e especiais de comédia, seja sobre o rigor da escrita de piadas do Jerry Seinfeld, “parnasiano”, seja sobre uma genealogia informal da comédia negra americana (In Living Color, Chappelle’s Show, The Chris Rock Show, Key & Peele, etc). Você acha que a abordagem cômica tende a ser desvalorizada como forma de reflexão séria? Ou isso seria mais coisa dos críticos, já que o público costuma dar bastante atenção à comédia? Escrevendo textos tão frequentemente engraçados no tom, e sérios no pensamento que propõem, como você enxerga essa tensão entre o riso e o sério?
Se você quer saber, pra mim a comédia é a manifestação mais sofisticada e intelectualmente interessante do espírito humano. O contrário, a concepção de que tudo na vida é trágico, é uma conclusão mais ou menos óbvia até, e que me soa como uma epifania do seu sobrinho adolescente, cheio de espinhas na cara, que acabou de descobrir Nietzsche, começou a fumar maconha e foi arremessado num poço de niilismo meio preguiçoso e bobão. Qualquer platitude que esse moleque dispara, durante as reuniões de família, é carregada da gravidade e de um pathos afetado de adolescente na cadeira gamer. A comédia, ao contrário, é uma elaboração, portanto um refinamento, das conclusões desse menor. Na comédia o que é ressaltado não é o aspecto trágico da vida, mas o absurdo desse traço trágico, repare. Não acho que ela, como gênero, não seja adequadamente levada a sério. Mas creio que talvez seja um cadinho assim, digamos, subestimada. Perspectiva é um bagulho sempre importante, portanto comecemos do início. Por diversas razões históricas, há uma tradição anglo-irlandesa de sátira que é meio que a responsável original pela criação dos contornos modernos do gênero e até, séculos depois, pelo que ficou conhecido como “comédia de insulto”. Em A Tale of a Tub, no início do século XVIII, Jonathan Swift deu o modelo do que é uma crítica anticlerical. Não haveria A Vida de Brian, dos Monty Python, por exemplo, se não houvesse Swift. No panfleto A Vindication of Natural Society, publicado em 1756, Edmund Burke ridicularizou o deísmo de Lord Bolingbroke, mas copiou a sua prosódia e o seu estilo de argumentação, de um jeito tão convincente, que teve que esclarecer, no prefácio à segunda edição da obra, que aquilo era apenas ironia. A mesmíssima coisa ocorreu quando Eminem parodiou o flow dos caras do mumble rap, naquele disco mediano de 2018, Kamikaze, só de pilha e lelescagem. Mas acabou soando tão convincente como um mumble rapper também, que depois teve que explicar a piada ao seu fandom. George Bernard Shaw, irlandês da gema, inaugurou uma escrita política ágil, engraçada, mas, ao mesmo tempo, complexa e profunda, em Socialismo para Milionários. Lembro agora de um perfil/entrevista em que Paulo Francis, outro fã de Shaw, escreveu sobre o escritor Marques Rebelo, para a extinta revista Senhor. Nele, o jornalista carioca afirma o seguinte, sobre o humor de Rebelo: “Tem um jeito peculiarmente carioca de falar, não só na pronúncia, como no tom. Uma das chaves do humor carioca é, talvez, seu jeito conciliatório, persuasivo. O humorista local diz seu texto como se o interlocutor concordasse com ele, a priori, cheio de ‘você sabe’, de ‘é, é’, etc., com o ar de falsa amabilidade que corresponde à forma casual com que os humoristas ingleses perpetram suas barbaridades”. Gosto dessa comparação do Francis, entre o humor carioca e o britânico, e me identifico um tanto. Ela me lembra aquele meme que diz algo mais ou menos assim: “Sempre que um carioca começa uma frase com a expressão ‘com todo o respeito’, se prepare para ser brutalmente desrespeitado”. Como disse uma vez um dos meus autores favoritos, Percival Everett, e aqui eu o cito de cabeça, mas era algo mais ou menos nessa linha, o humor é uma tática com a qual você desarma o seu interlocutor, apenas para na sequência bombardeá-lo com algo sério, às vezes metafísico e existencial, quase sempre cabeçudo. No fim, o broder foi atropelado por um caminhão e não teve tempo de anotar a placa. Humor, quando bem feito, é um esporte violento. Show no mercy, família.
Na discussão cultural (cinema, música, literatura, etc.) de obras que abordam questões de raça, classe, gênero, sexualidade (etc.), é comum que haja uma espécie de cisma: para um lado vão análises que põem essas questões em primeiro plano, não raro de olho no conteúdo, enquanto para outro lado vão análises que privilegiam mais o chamado aspecto “formal” – uma menosprezando a outra. Uma das grandes qualidades do seu livro é demonstrar que, quando bem-feita, uma interpretação forte mostra como se articulam esses supostos dois lados, desfazendo a divisão rasa. Concorda com isso, ou não? Se sim, queria que você comentasse um pouco mais sobre como desenvolveu essa perspectiva (leituras, modelos, hábitos), porque me parece mesmo uma exceção no debate cultural de hoje, especialmente no Brasil.
Abraçar um formalismo despido de qualquer consideração extra-estética é uma atitude meio boba, um pouco ingênua, e você não vai muito longe com isso, eu te garanto. Por outro lado, é uma perda de tempo a galera que se derrama em digressões políticas, e até sociológicas, a respeito de uma obra, mas que, no fim, jamais te explica o porquê daquele quadro ter sido pintado do jeito que foi: com aquelas tintas e daquela forma, com um método x ou y. Ou como esse, ou aquele outro escritor, escreveu um diálogo, com aquela musicalidade e ritmo particulares, usando apenas assonâncias e aliterações e a alternância de frases curtas e longas. O melhor modelo de crítica é o que consegue aliar as duas coisas, os dois tipos de reflexões. Nesse sentido, Susan Sontag ainda é imbatível. As críticas de arte de Robert Hughes, que antigamente muita gente lia e comentava, mas que hoje tem andado esquecido, também não ficam muito atrás. No Brasil, nesse quesito, ainda não apareceu ninguém melhor do que José Guilherme Merquior. Menos pelo estilo, às vezes palavroso e janotinha demais, e mais pela coragem, atenção e originalidade com que discutia seus temas. Tenho gostado muito de ler as coisas do W. David Marx, que, ao escrever sobre moda masculina e costume, alterna entre aspectos técnicos e formais do assunto, e um escopo maior e bem mais amplo, no qual há história, sociologia e o que mais der na telha.
No prefácio ao livro, o Mauricio Stycer diz que sentiu falta de mais análises sobre brasileiros. Faz algum sentido, ainda mais porque, nos brasileiros que você de fato comenta (a série documental sobre a Xuxa, Cangaço Novo, Aquarius, por exemplo), parece que o grau de incisividade, provocação e seriedade sobressai ainda mais. Que filmes, séries e etc. brasileiros você gostaria de comentar, de ter comentado, de discutir, talvez num “Cinéfilo nem é gente 2”? Algum(a) autor(a) que chama a sua atenção nesse painel todo?
O Stycer é um excelente observador. E, olha, ele tem 100% de razão nessa afirmação. E o motivo é o seguinte: os meus gostos, a minha formação, a minha sensibilidade, enfim, tudo isso é irremediavelmente americanizado demais. Não é uma coisa da qual eu me orgulhe, mas é um fato simples e objetivo. Assim, a justificativa mais rápida, e a que eu dou para mim mesmo e racionalizo, é a de que os americanos inventaram aquilo que a gente hoje em dia conhece como cultura popular — blues, jazz, rock, hip hop, quadrinhos, cinema, a porra toda. Então, como alguém que se interessa por cultura popular, tento ir sempre na fonte: traçar genealogias, descobrir a história do negócio e mergulhar nesse tipo de filigrana maluca. Ao mesmo tempo, é verdade que há uma assimetria da porra, um desequilíbrio imenso, entre a distribuição de bens culturais e artísticos criados nos EUA e no nosso país. Daí ocorre que se eu consumo pouca coisa nacional, eu preciso conscientemente ir atrás dessas coisas e procurá-las por conta própria. Ando mais ou menos empenhado em fazer isso com mais rigor. Tenho assistido a mais filmes do nosso cinema nacional, assim como também tenho lido mais autores brasileiros. Antes tarde do que etc. Mas, respondendo à sua pergunta objetivamente, eu gostaria de escrever sobre algo que me interessa muito, que é o humor brasileiro que derivou da geração da Era do Rádio, e que era meio que uma confluência dessa cultura radiofônica com a nossa tradição de teatro de revista. Nesse sentido, a minha hipótese é a de que Max Nunes, que jogava nas 11, mas era mais conhecido por ter roteirizado o programa do Jô Soares ao longo de muitos anos, foi o nosso S.J. Perelman. Mas quem, hoje em dia, discute a obra desses dois? Neca de pitibiriba. Mas tem um caminho aí, não tem?
Última pergunta. O formato da newsletter e do jornal tende à compactação e à agilidade. Você pensa em se deter na obra de um(a) autor(a) e destrinchá-la em profundidade? Se sim, quem e por quê (imaginando que te dessem todas as condições práticas necessárias para isso, óbvio)? E por outro lado, considerando outras linguagens que seus textos abordam: será que rola um “Cinéfilo nem é gente” versão música, versão literatura, talvez até versão política?
Para o espanto de absolutamente ninguém que me lê, gostaria de me dedicar com calma e cuidado à obra do Paulo Francis, que para mim é o equivalente ao que o fantasma de Vladimir Nabokov era para Martin Amis e o de George Orwell para Christopher Hitchens. Acho graça dessa minha obsessão pelo sujeito, sobretudo levando-se em consideração o fato de eu sou um homem negro, e de que ele era um racista arrombado. De todo modo, não houve alguém com quem eu tenha aprendido mais: sobre política, cultura, praticamente tudo, na verdade. Francis errava muito, às vezes grosseiramente, mas ainda é um modelo de estilo e, nos seus melhores momentos, não devia nada aos maiores ensaístas de sua época — mesmo os americanos que ele idolatrava, da geração da Partisan Review à galera da New Yorker. Agora, da mesma forma que o A.O. Scott, o antigo crítico do NYT de que sou fã, não me interessa tanto a ideia de escrever uma biografia sobre quem quer que seja. O que me interessa, nos autores que admiro, é sempre a obra. Foda-se que a Britney Spears está grávida de um cavalo. Então, sei lá, a ideia de organizar um volume com textos menos conhecidos e mais raros do Francis, por exemplo, me parece algo original e que, modéstia à parte, eu faria como ninguém. E sobre uma versão de música, literatura ou política, de Cinéfilo nem é gente, como diria o outro: “tamo aí mandando brasa”. Venham de DM, editoras, não se acanhem.
É meio raro, mas de vez em quando pinta uma entrevista por aqui. Já teve Érico Assis falando sobre seus Balões de Pensamento, reunião de resenhas, ensaios e textos críticos sobre HQ do autor da newsletter Virapágina; e também Alberto Mussa por ocasião do encerramento de seu Compêndio Mítico do Rio de Janeiro, com o romance A Biblioteca Elementar.
Pode demorar, mas em algum momento vai vir outra. Se não quiser perder, a sugestão é a de sempre: