Samba que pinga sangue: 40 anos da obra-prima de Fernando Pellon
Disco "Cadáver Pega Fogo Durante o Velório" deixaria Augusto dos Anjos com lágrimas nos olhos roídos pelos vermes
Há nas letras brasileiras uma linha subterrânea que poderíamos chamar de morbidez escrachada. Alcançando o humor pelo exagero, ela parte das bizarrias tétricas de Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo; passa pelo famigerado verme que primeiro roeu as frias carnes de certo cadáver; e tem, como pontos altos, a lírica parnaso-putrefata de Augusto dos Anjos e a poesia de Aldir Blanc e João Bosco em “De frente pro crime”. Depois se difundiria, encharcada de cinismo, na imprensa sensacionalista do século XX. Nesse panteão, com certeza se ouve o dia inteiro o disco Cadáver Pega Fogo Durante o Velório, de Fernando Pellon.
O álbum completa 40 anos agora em 2024. É uma obra-prima. A começar pelo título, que lembra as manchetes de tabloides do tipo Notícias Populares ou – se faz só um pouco menos de tempo que você não é mais jovem – a saudosa comunidade no Orkut, “Anão vestido de palhaço mata oito”. Cadáver Pega Fogo Durante o Velório é quase um microconto de Dalton Trevisan. Pingando sangue e tudo.
Foi um colega de faculdade que me apresentou o disco, com elogios embasados, comentários informados pela tradição da música popular brasileira, muitos argumentos muito fascinantes que ele usou num trabalho de uma disciplina e de que me esqueci, embora talvez os repita aqui inconscientemente. Na época, só me ficou gravado o título mesmo: Cadáver Pega Fogo Durante o Velório – verso alexandrino para Bilac se revirar na tumba.
Se você não ouviu, vá agora mesmo ao seu tocador preferido. Duvido que, com o verso de abertura, você não se deixe prender por aquela curiosidade mórbida que faz motoristas desacelerarem perto de acidentes: “Quando eu soube que estava canceroso, / ergui louvores ao Criador”. É daí para baixo, com um humor desconfortável, sombrio, de extremo mau gosto – tão sensacionalista quanto sensacional.
O exagero das cores, da brutalidade e da repugnância aponta para a intenção satírica do compositor, reforçada pelo andamento alegre da música. Samba do bom; bom de cantar desgraças.
De que outra maneira senão humorística se poderia entender a saltitante “Vã Esperança”, com uma letra como “Ouvi dizer que o amor / é como em certos casos de lepra”? Ou então a volta do defunto-autor (no caso, defunto-cantor) do Memórias Póstumas de Brás Cubas, em ritmo de samba-enredo e com orçamento de Carnaval na Pindaíba, que é “Flores de Plástico ao Amanhecer”? Ouça bem a verdadeira anedota que é a canção “Carne no Jantar”, onde o eu lírico apela para que sua mulher não se demore na vista de um homem atropelado e nem se impressione, porque ele “suou para comprar” o bife que jantarão. Prioridades.
É no estribilho dessa música – “Disfarça e olha” –, aliás, que Pellon condensa as contradições da “vida como ela é”: reconhece o magnetismo da desgraceira, assim como o pudor social de encará-las por muito tempo. Afinal, o abismo sempre olha de volta. Mas a lírica de Pellon tem no humor um escudo para não se deixar petrificar, nem pelo abismo, nem pela hipocrisia a fazer vista grossa pro lado nada elevado da vida. Seu álbum disfarça pouco, e olha fundo.
A atitude revela ainda mais sagacidade quando se recupera o contexto do disco. Mais do que George Orwell, ao menos na distopia brasileira, o ano de 1984 marca a decepção com a campanha das Diretas Já – cuja emenda foi morta pelo Congresso, e enterrada de vez com Tancredo Neves.
Os sambas mórbidos e jocosos de Pellon talvez elaborem musicalmente a discrepância da atmosfera da época, incerta se sambava com o povo que foi às ruas pela democracia ou se via nele a mesma multidão que apoiou o entulho autoritário. Sabe “Vai Passar”, do Chico Buarque? Tipo aquilo, só que mais sardônico. Ouça, por exemplo, “Altivez”:
Bata devagar
Abusar da violência
É uma excrescência
Bata devagar
Para que a dor eu possa suportar
Com paciência (...)
Bata devagar
Cada membro meu aguarda
Sua vez
Só não quero chorar
Para ao mundo poder mostrar
As marcas desse amor
Com altivez
Pode ser um eu lírico masculino demonstrando o pathos e o patético de apanhar da pessoa amada. Mas também pode ser uma caricatura de um país refém, em pleno autoengano, que confunde condescendência com altivez e que por uma síndrome de Estocolmo não manda seus canalhas para tribunais em Haia. Disfarça tanto que se esquece de olhar.
Enfim: poesia pura e musicada, para honrar seus ancestrais da linha tétrica-histérica de Álvares de Azevedo a Augusto dos Anjos. Em algum lugar do além, devem estar reunidos o filho do carbono e do amoníaco, o homem do emplastro Brás Cubas e mais ilustre corja, todos embriagados na sua noite na taverna, cantando em roda:
Disfarça e olha
E sai de fininho que é pra não dar na vista
Disfarça e olha
Eu não quero me envolver com a polícia
Disfarça e olha
Com cuidado para não se impressionar
Porque, amor,
Hoje tem carne no jantar
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Aproveitando que o assunto está meio mórbido, não sei se você já viu ou se pretende ver a sequência do Beetlejuice, de Tim Burton — tão divertida que nem parece um filme recente dele, com sua “enfiada de decepções”. Seja como for, e se curtiu este texto, talvez também se interesse por um ensaio que escrevi sobre Tim Burton, me perguntando por que ele fez tanto filme ruim nos últimos anos. Está lá no blog, que também está cheio de coisa boa. Se animar, espalhe:
Que título genial!