A gaia ciência radical de Eduardo Coutinho
Ecos de Nietzsche e de Marx se destacam em carta-depoimento escrita com desconforto e brilhantismo pelo maior documentarista brasileiro
Eduardo Coutinho faria 90 anos no dia 11 de maio. A efeméride e o acaso me puseram à frente um texto que ele escreveu em 1992, “O olhar no documentário”, para o catálogo do Festival Cinema du Réel. Foi publicado em dois livros da finada Cosac Naify, aquele em homenagem ao cineasta (Eduardo Coutinho, Milton Ohata [org.], 2013) e aquele em celebração aos 30 anos do É Tudo Verdade (A verdade de cada um, Amir Labaki [org.], 2015).
“O olhar no documentário” é um título genérico, que tampouco ganha profundidade com o subtítulo “uma carta-depoimento para Paulo Paranaguá”. Ao longo do texto, nota-se o desconforto de Coutinho. O tempo todo ele reclama da dificuldade de dirigir-se a um interlocutor abstrato, ele que odiava tanto as generalidades quanto o protagonismo. Já não gostava de ser entrevistado; tomar a palavra escrita, publicamente, é pior ainda. Vai, Eduardo, ser gauche na página.
Jogo de cena, talvez. O que, como sabe quem viu o filme – seus filmes –, não anula a sinceridade. Mas não se engane com o encadeamento torto, as hesitações, o tatear de ideias: há muita sofisticação de pensamento no texto. Ele dá a ver uma espécie de recriação escrita do emaranhado de raciocínio da fala (“O improviso, o acaso... esse é o alimento essencial do documentário que procuro fazer”). Coutinho oferece ao longo do texto alguns achados que me parecem sabedoria, impura e simples.
Ela talvez fique mais explícita quando o cineasta se volta para seu ofício. Refletindo sobre o documentário, ele recusa uma linguagem padronizada, “naturalista”, típica do jornalismo que associa à Globo, ao “mito da informação, balanceada e imparcial”. Uma assepsia que abomina o que mais lhe interessa: “olhar e escutar pessoas (...) o Outro social e cultural.” Para Coutinho, o documentarista deve estar aberto a esse outro, deve buscar a razão, as razões, dele. E então arremata num trecho longo, que preciso citar por inteiro:
“Filmar sempre o acontecimento único, que nunca houve antes e nunca haverá depois. Mesmo que seja provocado pela câmera. Mesmo que não seja verdade. Sem esse sentimento de urgência em relação ao que estará perdido se não for filmado simultaneamente, para que fazer cinema, atividade no fim das contas lenta, cansativa e pouco rentável?
Só se pode subverter o real, no cinema ou alhures, se se aceita, antes, todo o existente, pelo simples fato de existir.”
O grifo na última frase é meu – Coutinho provavelmente o odiaria, com seu desprezo por ênfase e retórica. Mas ela deve sobressair, para que se veja sua precisão filosófica. Um aforisma. O cineasta faz uma síntese invejável, cria uma lição de imanência radical. Cabem Nietzsche e Marx, seus muitos volumes, abreviados num golpe de frase. (Todo este texto é uma nota de rodapé a ela.)
Uma dose de Nietzsche
Comecemos pelo fim da frase: “se se aceita, antes, todo o existente, pelo simples fato de existir.”
Resumindo de modo grosseiro, a filosofia de Nietzsche defende em alguns momentos a ideia de amor fati, um amor ao destino que coube a cada um, uma aceitação da vida em suas glórias e desgraças, embaraçadas até serem indissociáveis. (Modelo: o Aquiles da Ilíada, que sabe que vai morrer se pisar em Troia, mas vai mesmo assim.) É um gesto de afirmação absoluta da existência. Do pacote completo do mundo: não há outro, nem um “melhores momentos” deste. Este nos coube, e mais do que basta.
Disso fala o famoso experimento mental do “eterno retorno”, no fragmento 341 d’A Gaia Ciência. Um demônio sussurra ao teu ouvido que toda tua vida se repetirá, exatamente igual em todos os pontos: isso te destruiria? “Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: ‘Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”?
A abertura ao Outro, que Coutinho defende, deriva de uma afirmação análoga: “o simples fato de existir” legitima o existente – isso basta, isso o insere na rede do mundo, isso o conecta aos melhores momentos de nossas vidas, aqueles que viveríamos de novo, e de novo, e de novo. As coisas que “deveriam ser” perdem, sempre, para as coisas que “são”, exatamente por isso – estas são. Têm uma espessura que falta àquelas. O documentário a serviço do real, em sentido amplo e humilde.
Outra de Marx
No entanto, a afirmação nietzschiana de Coutinho não implica uma aceitação acrítica da realidade. Não corrobora as misérias, não as recomenda nem defende. O cineasta sentiu na pele a perseguição autoritária. Jamais ignorou o abismo social brasileiro, com sua injustiça e violência diárias. A frase ficaria incompleta se não considerássemos sua primeira parte, a oração principal do período: “Só se pode subverter o real, no cinema ou alhures”.
Duas palavras se destacam. “Subverter” traz o pressuposto de que o real é maleável, capaz de se moldar e se transformar – se não, seria impossível subvertê-lo. É fácil imaginar maneiras de fazer isso no cinema, como comprovam tantas obras radicais, algumas já quase ou mais que centenárias: O Homem com uma Câmera, de Dziga Vertov, por exemplo, se nos restringirmos aos documentários.
Mas Coutinho estende o alcance da subversão: “alhures”. Para um artista que se formou na virada dos anos 1950 para os 1960, aproximando-se dos Centros Populares de Cultura do Partido Comunista, para alguém que sempre se definiu como adepto do materialismo, é fácil entender o “alhures” – trata-se das condições sociais como um todo. Da luta por dignidade e liberdade. Ou melhor: da luta pelo reconhecimento da dignidade e liberdade inerentes às pessoas, pelas condições para que possam florescer, condições roubadas pela miséria, violência, desigualdade obscena e rebaixamento cotidianos.
E voilá
De certo modo, tudo isso já estava presente na forma cinematográfica de Cabra Marcado para Morrer, o clássico documentário de 1984.
A incorporação, à própria feitura do filme, do trauma político-social, sem se deixar vencer por ele; o sonho sessentista de aliança entre populares e intelectuais reatado; a afirmação radical da existência de Elizabeth Teixeira e sua família contra a perseguição do regime. Nietzsche e Marx fundidos na vontade de potência daquelas pessoas, daquele povo cuja existência é em si subversiva, diante de um aparato empenhado em matá-lo figurativa e literalmente. “Mas a vida tem tal poder: / na escuridão absoluta, / como líquido, circula” (Drummond, “Noturno à janela do apartamento”).
“O olhar no documentário” só fez emergir de modo explícito a filosofia, botando-a em palavras. Apenas 22. Nada mal para quem, como os interlocutores-personagens diante da câmera, estava desconfortável com a escrita.
Ainda daria para falar muita coisa do Coutinho: sua virada “pós-modernista” nos últimos filmes, a relação dela com o que escrevi aqui, isso e muito mais. Quem sabe um dia, né? Se você se inscrever na newsletter, já garante que esses possíveis textos vão chegar a você:
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Não é a primeira vez que crio uma ponte entre um ícone da cultura brasileira e Nietzsche. Quando morreu o Moraes Moreira, tracei um paralelo similar entre o “Besta é tu” e o “eterno retorno, lá na minha coluna no site da Época, que você pode ler aqui.