Detalhes: as pedras fundamentais da boa ficção
Na literatura, na música, no cinema ou na TV, um detalhe bem escolhido faz toda a diferença para sua história
O detalhe significativo é uma pedra de toque da ficção realista – permite avaliar a pureza e o apuro do texto. No seu grande livro Como funciona a ficção, James Wood dedica toda uma seção à análise de detalhes que pulsam de vida, a partir de exemplos clássicos da prosa de ficção: o barômetro de Flaubert, um pedaço de melancia em Tchékhov, uma venda mal ajustada numa execução em Tolstói. No entanto, não é só na literatura que encontramos o detalhe significativo. A leitura atenta de ficção, na verdade, treina o olhar para identificarmos o brilho e o valor de um detalhe bem escolhido, que pode surgir em qualquer lugar: numa música, num filme, na frase despretensiosa que ouvimos na rua.
Pode-se ler o clássico conto O Aleph como um preâmbulo e encenação para uma metafísica do detalhe – ou melhor, o conto é a embalagem de um elogio ao detalhe. Como se sabe, na história o Borges-de-faz-de-conta tolera um escritor argentino chatíssimo e sem talento, com o objetivo único de ganhar acesso à casa dele, onde haveria cartas íntimas de uma antiga paixão do protagonista. Ao chegar lá, o Borges ficcional descobre que, num recanto escuro da casa, há uma fresta com um Aleph – um ponto específico e escondido do qual se vê, simultaneamente, tudo que existe no universo. O todo contido no infinitesimal; um Big Bang nem Big e sem Bang; a condensação absoluta. A metáfora tem seu apelo e abre brecha para muita metafísica, mas prefiro a metalinguagem: é a poética do detalhe em estado puro.
Duvido que na hora de compor “I Was a Teenage Werewolf” os Cramps tenham se dado conta de que se inseriam na longa tradição do detalhe fulgurante, ao lado de nomes como Flaubert e Tolstói. Punks que eram, provavelmente rejeitariam qualquer proximidade com a tradição, com qualquer forma de autoridade, sobretudo artística. Tanto faz. O fato é que, após Lux Interior abrir a música cantando o título, ele diz: “Braces on my fangs”, um detalhe revelador digno da cicatriz de Ulisses, na minha opinião. Imaginar o aparelho fixo nas presas do lobisomem basta para que vejamos a figura: um misto de ferocidade e impertinência, um monstro imaturo que não tem noção do tamanho do corpo, por ter crescido muito rápido. Com esse único detalhe, a letra cria uma personagem mais viva que, sei lá, o elenco de O Lobisomem, filme de 2010 com Benicio del Toro, Anthony Hopkins e Emily Blunt. Derruba muita história de terror medíocre. E nem chegamos a vinte segundos de música.
Para incluir Borges na tradição do romance argentino, o escritor e crítico Ricardo Piglia se vale de uma incrível gambiarra argumentativa: enxerga-o como um “miniaturista”, um “condensador”. Na sua leitura, Borges – autor de contos, ensaios e poemas brilhantes, todos curtos – miniaturiza e condensa as grandes linhas dessa tradição, que vai de Facundo a O Jogo da Amarelinha, passando por “Pierre Menard, autor do Quixote”. Se Piglia está forçando a barra ou não, pouco importa; o essencial está na miniaturização. Como não ver aí, de novo, a poética do detalhe, alephiana? A lição borgiana – e píglica, se me permitem – é que o detalhe em relação ao todo não têm uma diferença de natureza, mas de escala. A miniaturização deixaria isso evidente, ao redimensionar o todo, reduzindo-o ao tamanho do detalhe.
Desde a explosão de “Alegria, Alegria”, as letras de Caetano Veloso já foram amplamente dissecadas, inclusive as mais recentes. Mas e daí? Voltemos a uma delas: “Neguinho”, na voz de Gal Costa em Recanto (2011). A dada altura, na lista de defeitos e qualidades que é a letra, ouvimos: “Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo”. O canto cansado de Gal Costa nem precisa ressaltar o se possível para que ele fulgure. Ao ouvi-lo, automaticamente vem à tona o avesso da frase: e se não for possível? “Daí é pra mim primeiro”, seria uma resposta possível, e provável. Como autêntico detalhe fulgurante, o se possível condensa o olhar crítico da letra e instiga o pensamento. Em ensaio, fragmento, Tales Ab’Sáber inclui “Neguinho” entre as canções de Caetano que são “a crônica mais viva do presente, em cada momento histórico do percurso do músico/sujeito na sociedade em rápida modernização numa época difícil”. Considerando o ano de lançamento, isso a torna, portanto, um indicador, um índice das contradições da última onda de euforia com o Brasil. O que esse grão de ironia revela a respeito da tempestade de areia que se seguiu?
Assim como Machado de Assis – outro amante do detalhe iluminador, em especial se oblíquo e dissimulado –, Borges desdenhava o pitoresco, o exótico, que não deixam de ser uma vulgarização do valor do detalhe. Se o acusavam de pouco argentino, o autor de “Funes, o memorioso” dizia que não há no Corão nenhum camelo, e nem por isso julgaríamos o livro pouco árabe. Salvo engano, foi Roberto Schwarz quem notou uma semelhança entre a visão borgiana e o ensaio de Machado a respeito do “instinto de nacionalidade” da nascente literatura brasileira. No fundo, pensa Schwarz, os dois atacam problemas similares, que poderíamos parafrasear assim: o pitoresco e o exótico podem ser detalhes reveladores, mas não para nós – são reveladores, quando muito, para um estrangeiro que nos olhasse de cima para baixo. O potencial de fulguração do detalhe, portanto, é uma questão de ponto de vista (e de política, consequentemente). A depender da tua posição na cadeia alimentar, ele te ilumina ou te aprisiona num clichê.
Parece não haver dúvidas de que O Irmão do Jorel é um dos melhores desenhos animados de hoje, brasileiros ou não. Criada pela TV Quase, a série retrata o personagem-título, sem nome, porque é irmão mais novo de um rapaz a quem todos adoram – o tal Jorel – de modo que não é preciso o nome do menino para identificá-lo; “irmão do Jorel” já basta. A maestria da série, no entanto, está na combinação harmoniosa entre uma história que as crianças podem apreciar e os detalhes destinados aos adultos. Por exemplo, uma criança riquíssima que delega aos executivos da empresa familiar o dever de casa: uma redação sobre como mudar o mundo. Num brainstorming, os executivos – todos iguais, com voz abobada e cabelo lambido de gel – discutem o que colocar, e alguém diz: “Se é mudar o mundo, acho que é pra melhor, né.” Rimos, e as crianças também, porque isso nos parece óbvio. Mas o detalhe está na necessidade de um deles falar isso, o que faz sentido: dessas megacorporações, quantas agem de acordo com essa obviedade, para além do marketing? A frase é só uma piada, contada rapidamente, num desenho infantil – e no entanto...
Para o Antonio Candido de fins da década de 1950, na primeira edição de Formação da Literatura Brasileira, nosso cânone não era muito mais que um detalhe: ele chama seu objeto de estudo de um “arbusto”, “uma moita no jardim das musas”, secundário em relação à já secundária literatura portuguesa. Podemos afirmar com segurança que não é mais o caso, mas, mesmo se fosse, estava justamente aí a potência desses textos: assumir a condição de detalhe, mas subverter a hierarquia e converter a minoridade em força (é, a grosso modo, o argumento de Schwarz a respeito de Machado, a flor da moita candidiana). De novo aqui, estamos na vizinhança de Borges, que subscreve um elogio às tradições marginais, periféricas, aquelas que são detalhes na literatura e cultura ocidentais; por exemplo, as perspectivas irlandesa e judaica. No olhar de Borges, elas formam um corpus textual que não raro colocou em xeque seu irmão maior, franco-germano-britânico ou anglo-germano-francês, excessivamente convicto da própria grandeza. É das franjas, das bordas, das fronteiras e das beiradas que essas outras tradições extraem seu olhar renovado, que se converte em revolução de perspectiva: os exemplos são vários, como o inglês magmático de James Joyce e o marxismo cabalístico de Walter Benjamin.
O cenário escuro acabou de presenciar o confronto entre um padre e um homem que se diz filho do diabo, mas que falhou em convencer o sacerdote, pois não realizou nada de sobrenatural e, ainda por cima, não domina o português culto. Ao ouvir o último desafio (“eu se proponho a te aniquilar”, diz o homem), o padre desiste e chama um professor de português. A rigor, a piada do esquete de Hermes e Renato já acabou, mas eu rio ainda mais nesse encerramento. O tal filho do diabo ameaça o professor, invocando o pai infernal, mas erra o nome, e o professor diz: “Essa foi de doer o ouvido, hein? É LÚ-CI-FER, vindo da luz!” Giz na mão, dedo em riste, o tom professoral no pior sentido da palavra, tudo é engraçado, mas a insistência convicta do vindo da luz é ainda mais. A insistência despropositada na origem etimológica parece muito significativa. Talvez seja um autorretrato: exprimiria a arrogância de quem vai trazer a luz aos outros. De quem acredita, piamente, que é o holofote redentor de “alunos”, os “sem luz” – significado, aliás, desmentido pela própria etimologia.
Livro que segue a tradição das coletâneas de fragmentos e aforismos, Prosas apátridas, de Julio Ramón Ribeyro, pode ser lido também como uma colcha de detalhes. Num deles, o fragmento 44, o escritor peruano propõe um experimento: que se projetem, primeiro, slides dos grandes mestres da pintura ocidental e, depois, apenas os detalhes dessas imagens – lá, diz ele, encontraríamos “pintura moderna, seja impressionista, cubista ou não figurativa. É como se nos quadros dos grandes mestres estivesse contida potencialmente toda a pintura moderna (...). Dessa perspectiva, a arte chamada moderna não seria outra coisa que um detalhe ampliado da arte antiga ou um ‘olhar mais de perto’ a realidade. Simples questão de distância.” De fato, questão de distância: o detalhe é, das coisas ao longe, a que está mais perto de nós. Com o tempo e a devoção alheia, as grandes obras se afastam dos mortais que as contemplam, mas o detalhe as atrai de volta. Ele nos fornece uma lanterna para explorá-las; ele é a pedra primordial, lançada no lago oceânico das obras-primas, que o agita, seja afundando, seja quicando na superfície da água.
Em seus vários textos e livros, o historiador carioca Luiz Antonio Simas cita mais de uma vez um ponto do Caboclo da Pedra Preta, que versa sobre pedrinhas miudinhas. Diz: “tem a maior / tem a menor / a miudinha é que nos alumeia”. Simas tanto absorveu a lição, que usou a pedrinha miúda para batizar um de seus livros. Além disso, ele vê nessa frase uma síntese filosófica, aforismática, de imenso potencial. Para Simas, ela conversa, por exemplo, com uma das teses de Walter Benjamin sobre a história, que deveria ser lida do ponto de vista não dos vencedores, mas dos vencidos; isto é, dos miudinhos. Faz sentido: é a pedrinha miudinha – mundo em miniatura, aleph portátil – que nos força a mudar a escala do olhar. Ao voltarmos à dimensão ordinária, voltamos com a vista limpa e fresca. A pedrinha miudinha estaria para a geologia como o detalhe fulgurante para a literatura e as artes – alumeios, coletados na beira da estrada.
Pedra de toque. Pedra preciosa. Miudinha. Pedra de afiar. Já estava tudo lá no Drummond, no João Cabral: a educação pelas pedras no caminho. Nada do que é pedra nos é estranho. Afinal, vivemos em uma. A terceira na órbita do sol. Uma pedrinha na periferia da galáxia. E nós? Somos ainda menos: detalhes, tão pequenos, na borda do quadro. Por sorte, às vezes – raramente – a gente brilha.
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