Rabiscos em estado crítico #2: duas revistas, duas entrevistas
Quando Davi Arrigucci Jr. e Roberto Schwarz falam, a gente escuta
Se você gosta de papo bom, reto e sério, a dica são duas boas entrevistas com Davi Arrigucci Jr. e Roberto Schwarz. Saíram faz pouco tempo, uma na revista Cult de junho e outra na Margem Esquerda #40, respectivamente.
São celebrações – com discussão crítica, no caso do Schwarz – de dois nomes decisivos da crítica literária brasileira. Melhor que ainda estejam vivos para ver, talvez rebater. Celebração crítica que os entrevistados, aliás, faziam com frequência. Basta ver suas reflexões em torno e a partir de Antonio Candido. Ele os inspirava, mas não os limitou. Arrigucci e Schwarz não merecem menos que isso.
Companheiros de viagem
As entrevistas são muito diferentes, a começar pela extensão: maior na da Margem Esquerda que na Cult, por causa das propostas de cada revista. No contraste, ressaltam as semelhanças.
Por exemplo, o quanto Arrigucci e Schwarz falam das suas redes intelectuais. Interlocutores, amigos, professores, as leituras na imprensa ou nos livros, a família. O estudo e a literatura podem ter muito de solitário, mas talvez a própria forma da entrevista tenha estimulado os dois críticos a destacar seus vínculos, seu diálogo. Não se pensa sozinho — mesmo desacompanhado.
Um médico de São João da Boa Vista, amigo da família de Arrigucci, tinha um ex-aluno, um tal Antonio Candido, a quem recomendou o jovem literato. Schwarz recorda como seu apartamento em Paris virou um ponto de articulação dos exilados brasileiros, quando Cacaso esteve por lá. Cortázar, Bandeira, Borges, Tchékhov – todas as leituras fundamentais de Arrigucci lhe chegaram por mãos amigas, mãos alheias. Schwarz percorre o Rio de Janeiro atrás de colaboradores para a Tempo e Prática, revista que Perry Anderson sugeriu que criassem. Etc.
É todo um circuito que, se não desaparece, com certeza fica de lado (relegado aos “agradecimentos”, se tanto) na hora de assinar um livro ou um estudo, mas que talvez pudesse alargar a noção de autoria. De todo modo, ao menos garante um trabalho para os sociólogos do futuro próximo ou distante. Vai dar para pedirem financiamento de suas pesquisas em torno das redes de sociabilidade, dos círculos intelectuais, revistas e hábitos de determinado estrato social, aquela coisa toda. Fapesp, aí vêm eles.
Do lado de fora da academia
Também me chamou a atenção a importância de alguns autores extra-acadêmicos que Arrigucci e Schwarz celebram. Em especial, de Anatol Rosenfeld, apesar de também falarem de Otto Maria Carpeaux, Paulo Rónai e Alexandre Eulalio.
Curioso: Flora Süssekind já escreveu sobre como a geração do Antonio Candido e Afrânio Coutinho destronou a crítica literária da imprensa, trocando-a por uma vertente de ambição científica que priorizava a universidade (o ensaio de FS está em Papéis Colados). De fato.
Mas talvez parte da riqueza intelectual dos discípulos deles, que consolidaram a mudança, se deva ao momento de transição. Puderam frequentar ambas as modalidades de crítica, tanto a mais lenta e detida da universidade, quanto a mais eclética e abrangente da imprensa. Que não deveriam se excluir.
Transição nada pacífica, aliás. Schwarz não faz mistério de como lhe desagradavam alguns aspectos da vida universitária. “Tinha pavor do lado burocrático”, diz, “mas gostava de ensinar.” Passa boas páginas da entrevista relembrando a aventura de publicar a Teoria e Prática – numa época em que isso não contava pontos pro Lattes, pois ele nem existia.
Há um momento em que Schwarz quase que transparece alguma alegria, ao narrar a conjunção de fatores que deram em “Cultura e Política (1964-1969)”, seu ensaio poderoso sobre o período imediatamente após o golpe. Foi quando, segundo RS, decantaram na sua cabeça várias experiências, afinal alinhavadas no texto: a efervescência de teatro, música e literatura vivida em primeira mão; a reflexão estética e política engajada; o distanciamento físico mas não intelectual em relação ao Brasil, escrevendo a partir da França; e a inspiração de Rosenfeld. “Por sorte ou por azar, acabei encontrando um padrão de ensaísmo. Guardadas as diferenças, era a liberdade do Rosenfeld que sempre me serviu de modelo e que a estada na França me facultou.” Ironicamente, a investigação livre se tornou um padrão imitadíssimo entre seus discípulos.
O que serve de alerta: é preciso sempre reverter essa trajetória. A “liberdade do Rosenfeld” é um bom antídoto contra um risco permanente: a ossificação das ideias e do método de Schwarz (ou de Arrigucci, ou de Candido, ou de Bosi, ou de Silviano Santiago, ou de Luiz Costa Lima, de quem quer que seja, talvez até mesmo de outras áreas mais distantes da crítica literária). Sua transformação em fórmula, do modelo ao molde. A produção em série, industrial em sua escala, de derivados.
Daqui por diante
Arrigucci está com 80 anos. Schwarz, 84. Mantêm a lucidez e a inquietude, como outros companheiros de geração, em outras áreas, tipo Caetano Veloso ou Chico Buarque.
Arrigucci fala de um livro por escrever, Sertão Oeste Pampa, um ensaio que vai conectar o faroeste – com destaque para o cinema de John Ford – às narrativas literárias brasileiras e argentinas. “[Tem] a complexidade de questões que mexem com a experiência histórica dessas nações, com o processo de modernização – e com um fundo de melancolia relativa ao que se destruiu nesse processo. É a história dos vencidos: o bandido rural, o gaúcho rebelde... é uma história de bandidos.” Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem que matou o facínora não.
Schwarz segue acompanhando os desdobramentos políticos e sociais. Tentou dar conta deles em Rainha Lira, versão teatral de um ensaio que não será escrito, que teremos de imaginar ou deduzir, pois o próprio autor admite seu descompasso em relação aos eventos, assim como suas próprias dúvidas: “não dou a saída, por não sabê-la”. Mas reafirma o compromisso com a crítica: “tem que haver o intelectual que diz as coisas e depois seja o que deus quiser. Há muito pouco disso no Brasil.” Citou o amigo Paulo Arantes como exceção. E quem há de negar?
Abertura, arrojo, arejamento. Duas entrevistas, em duas revistas, que mostram por que ainda existe e deve seguir existindo a crítica literária.