O sol no rosto, a água cobrindo os ouvidos mas não a ponta dos dedões dos pés, Danilo respirou fundo e continuou boiando ao sabor do sal e da maré calma — finalmente, férias.
Assim que saíra do escritório, na sexta, cada hora trazia mais para perto aquele momento no mar, sentindo o vento lhe roçar a pele, e a sede, timidamente, se manifestar. Lembrou das latas de cerveja no cooler e tentou não sorrir. Impossível.
Por isso que Danilo demorou a notar o que havia de errado na praia: sol, calor, fim de semana, logo após a hora do almoço — e as pessoas debandando. Saíam com as havaianas numa mão e as crianças na outra; abandonavam cangas, protetores solares, cadeiras, brinquedos; gritavam. E Danilo flutuava no útero marinho, indiferente à grande nave que tomava o céu azul.
A sombra dela vinha da cidade e, mesmo de antes, desde as montanhas. Chegava a cobrir a orla.
Danilo pensava que fosse uma nuvem cobrindo o sol, embora fosse estranho, repentino, estava tão azul o céu. Mas acontecia de surgirem nuvens, sopradas pela força do vento nas alturas, chegadas de longe para chover, justamente, ali.
Não era o caso.
O casco da nave era pontilhado de neon, e ela não fazia nenhum barulho. Dava para sentir no ar as correntes movimentadas pelo pouso, que, tão suaves, não eram mais audíveis para Danilo do que a carícia da água, as ondas quebrando logo ao lado, a espuma.
Quando o disco voador estacionou a uns três metros de altura, Danilo se deixava levar por uma onda mais alta. Ele mergulhou nela mais ou menos ao mesmo tempo que as comportas da nave se abriram, as luzes coloridas piscando freneticamente e se alternando em círculos, como uma ciranda. Por fim, quando desceram do disco os seus tripulantes — que lembravam planárias, mas roxas, com quatro braços, e grandes globos oculares saltados, verdes, com duas pupilas em cada um dos três olhos –, Danilo já estava no raso, andando de volta para a areia. Com o dorso da mão, tirava a água dos olhos para abri-los.
Estarrecido. “Pane” sequer começava a descrever o que se passava na cabeça de Danilo. Ele olhava as planárias gigantes, apoiadas em suas caudas, que deslizavam pela areia, como cobras encantadas e decididas a dar um passeio sem sair da posição. Podia ser um sonho, ou uma ação publicitária, ou uma pegadinha na TV. Mas podia ser real também. Danilo imóvel: seus pés afundavam devagar na areia mole e úmida da beira da água.
Eram muitas planárias. Elas desciam em grupos de oito, percorrendo as plataformas que saíam do ventre da nave. Algumas se abaixavam para tatear aquele estranho chão, granulado e enxerido. Outras analisavam as pegadas, ou os guarda-sóis, suas cores e formatos, à procura de padrões na sua disposição e arquitetura. Havia quem se interessasse pelos objetos abandonados, observando cautelosamente os baldinhos de areia enchidos até a metade. Uma delas virou para baixo um protetor solar, o espremeu, roçou de leve no creme e, vendo que era inofensivo, espirrou-o num colega. Não pareciam ter notado Danilo — ainda.
Não demorou. Viraram seus olhos múltiplos para aquele estranho ser, bípede, rosado, cuja pele, embora úmida, parecia ter descascado em pontos estratégicos das costas e dos ombros. Compararam-no a uma espécie de seu planeta, a mais próxima dos nossos mamíferos, e acharam graça que, aparentemente, nessa estranha e esquecida colônia da periferia da — nossa — Via Láctea, aqui as espécies tivessem se desenvolvido de um ancestral tão primitivo quanto um — nosso — mamífero. Da nave, desciam mais planárias, e todas repetiam os mesmos gestos: chegavam muito perto do bípede, tateavam-lhe o torso, o abdômen e o baixo ventre, percorriam-no com sua cabeça de planária de alto a baixo, e se viravam para fazer outra coisa.
A sede de Danilo havia sumido. A lembrança do escritório também. Aos primeiros toques das planárias, até seus movimentos tinham desaparecido. Ele perdera a contagem de quantas delas o haviam tocado quando desmaiou, caindo de costas na areia e na água.
O mar lhe cobria o nariz e a boca, e descobria — vai e vem monótono que colaborou para as planárias perderem o interesse naquele ser inerte. Uma delas encontrara estranhas cápsulas de alumínio, geladas, dentro de caixas com isolamento térmico, e agora se divertiam vendo o comportamento da espuma e do líquido nelas contido. Chegaram a bebê-lo.
Desgarrada de um grupo de oito, uma planária puxou Danilo pelo pé até mantê-lo todo fora d’água: ela tinha notado que ele esboçava reações de asfixia. Encarou-o. Pensou em dissecá-lo. Imaginou onde faria as incisões para observar os órgãos. Lembrou-se de sua área de trabalho, dos seus instrumentos e dos componentes químicos em sua posse que o anestesiariam. Mas deixou Danilo lá, e voltou ao seu grupo, esquecida do trabalho, concentrada numa só ideia: tinham vindo ao planeta para passear. Férias, finalmente.
O conto é antigo, da época em que eu ainda publicava no Medium. Todo verão me lembro dele. Antes daqui, a versão mais recente saiu na versão blog desta newsletter.
Não estou exatamente de férias, mas ainda não sei quando volto com a programação regular por aqui. De qualquer forma, é fácil acompanhar: