Crise da Livraria Cultura: livrarias menores e de nicho são ótimas, mas não uma resposta suficiente
Soluções que naturalizem preços altos não ajudam a democratizar o acesso ao livro
A suspensão do decreto de falência da Livraria Cultura não mudou um fato: a Cultura já era. Desde 2018, com o anúncio da recuperação judicial, sua crise já tinha alcançado o ponto de não retorno, mas vinha de antes, com denúncias de exploração dos funcionários e outros problemas graves. Mesmo que não acabe, a Livraria Cultura acabou – terá de renascer, reinventar-se profundamente, e ainda assim não há garantia de que volte a dias mais ensolarados.
Constatado o buraco, a discussão logo se voltou para o que vem por aí. As opiniões parecem se dividir em duas grandes linhas.
Por um lado, tem o desespero: quem acha que não há salvação, que a Amazon vai engolir tudo, não há o que fazer – alguns acham até que mercado editorial no Brasil é uma contradição em termos, um delírio, aqui ninguém lê, aqui é o fim do mundo, bom mesmo é lá fora, etc, etc.
Por outro, também há análises um pouco mais sóbrias. Aponta-se que o varejo tem de fato perdido espaço para o comércio online, e mais especificamente para a Amazon, no mundo todo. Fala-se que a Cultura se encaixa nessa tendência, agravada por sua aposta ruim no modelo “megastore”, sem contar outros erros de gestão. Aposta-se que nem tudo é desespero.
Essa linha de pensamento defende o modelo da livraria “humanizada”, digamos assim, ou de nicho: lojas menores, com atendentes que sabem o que vendem, em geral um espaço simpático com um café e áreas de convivência, sempre com disposição para se tornar um centro cultural informal do seu entorno. Rodrigo Casarin resume bem o ponto aqui, e de certo modo essa abordagem é a recomendada por Ted Gioia para salvar redes bem maiores que a Cultura, conforme sua análise da recuperação da Barnes & Noble.
Não discordo das linhas gerais desse argumento, até porque quem quer que vá a uma dessas livrarias charmosas sente na hora a diferença e as vantagens. Só um idiota torceria pelo fracasso delas. Meu ponto é que, embora sejam uma resposta, o problema talvez esteja na pergunta. Ou melhor: essas livrarias menores respondem a uma pergunta que não me parece a essencial, a decisiva, de onde derivam os principais problemas.
Quer pagar quanto?
Para chegar à pergunta decisiva, é preciso partir de uma questão que não aparece direito na defesa desse modelo de livrarias menores, de nicho: o preço dos livros.
Quem acha que a Amazon derrubou a Cultura provavelmente atribuiria isso à sua política predatória de descontos. O astronômico fluxo de caixa da Bezoszilla lhe permitiria destruir a concorrência de um modo simples: ela vende tão barato que ninguém consegue cobrir seus preços; logo, as pessoas compram lá; logo, os concorrentes fecham. O famoso dumping. Jorge Carrión faz uma boa denúncia disso em seu livro Contra a Amazon. Até os fundamentalistas do livre mercado deveriam se posicionar contra essas práticas, porque a concorrência supostamente seria um valor inegociável para eles (mas não podem ver um bilionário que já querem lustrar sua careca).
Buscando evitar a concorrência desleal, alguns mercados editoriais mais sólidos que o brasileiro – principalmente na Europa – tentaram uma solução regulatória: leis que impeçam os descontos abusivos durante um intervalo pré-definido de tempo. Ao longo de um ano, por exemplo, um lançamento teria um desconto máximo de 10%. Aqui no Brasil há um projeto, a Lei do Preço Fixo, que vai nessa direção.
É uma política de redução de danos. Em vez de esperar que a Amazon devore todos os concorrentes no setor livreiro, limita-se a sua voracidade naquela linha de produtos privilegiada, os lançamentos. Reduz-se a quantidade de ração na tigela da hidra. É o que tem para hoje, já que não está no horizonte a expropriação popular da Amazon nem nada mais radical.
De todo modo, essa solução convenientemente ignora um fator importante: o consumidor deve pagar mais caro. Seria possível entrar numa longa discussão aqui sobre o que compõe o preço do livro, o valor que se dá ao produto, a relação custo-benefício, o possível fracasso da estratégia de não reajustar o preço do livro por anos, etc, etc, mas não quero perder de vista esse dado fundamental: naturaliza-se o preço mais alto.
Essa naturalização também está presente na ideia de que livrarias menores são a resposta para a crise. Diz-se que tudo bem pagar mais pelo livro, justamente porque assim se mantém a estrutura dessas lojas, o que implica seu papel de centro cultural, a convivência, o atendimento olho no olho, personalizado.
Isso tem valor mesmo, eu pessoalmente adoro, mas até que ponto tem um apelo mais amplo? Essa linha de raciocínio não é pregar para convertidos? Imagine uma pessoa que compra livros no máximo casualmente, que pode muito bem não comprar livro nenhum, que, apesar de todos os desestímulos e toda a falta de incentivo, ainda assim cogita comprar um livro por estar barato. Tente convencê-la a pagar mais para beneficiar a cadeia livreira. Boa sorte – você vai precisar.
Quem aceita pagar mais em troca dessas vantagens das livrarias menores e humanizadas costuma ser exatamente quem já compraria livros de qualquer modo, quem acompanha o mercado editorial, quem já valoriza o livro e adere a essas práticas e discursos por uma questão de princípios – e não de bolso. Uma fatia, convenhamos, muito menor do que os leitores em potencial. Uma fatia mais elitizada.
E para mim esse é o problema central: a naturalização do elitismo do mercado editorial brasileiro. A pergunta decisiva, que a discussão não está fazendo, é oposta: como ampliar a democratização do livro no Brasil? Não me parece que preços altos ajudem. E não sei se podemos exigir isso das pequenas livrarias, que já tem desafios imensos pela frente – sobreviver, por exemplo.
“Um país se faz de homens e livros” — sim, mas quantos?
Lembra da Cosac Naify? Aquela editora que fazia livros caros, com acabamento gráfico de luxo, e que passou a maior parte da sua existência dando prejuízo, até que o dono cansou da brincadeira e simplesmente a fechou? Não faltaram editoras que tentassem seduzir o público dela, pequeno, mas rentável. Edições limitadas, chegando facilmente a mais de R$ 150, coisa de colecionador mais do que de leitor – você pode encontrá-las sem dificuldades, algumas até vendidas (ora, ora) exclusivamente pela Amazon.
Não parece um tipo de produto que reforça a ideia do Paulo Guedes (e não só dele) de que livros são feitos para uma elite? Será que essa ideia não está presente também, ainda que inconscientemente, em quem ignora o impacto de um preço mais alto nos livros? Se tudo bem pagar mais para preservar a cadeia do mercado editorial, então por que não revogar a imunidade fiscal do livro? Já que se vai pagar mais... O imposto ao menos em tese beneficiaria as instituições públicas.
Deve haver saídas que não passem por aumento de preço, ou que não o naturalizem. Escrevi um texto criticando a taxação de livros, e reafirmo tudo. O raciocínio é o mesmo: devemos democratizar o livro e a leitura no Brasil, então é preciso marcar posição contra preços mais altos – seja por causa de impostos, seja por modelos elitizados de negócios.
Se não, fica fácil: o mercado se acomoda a edições caras, proibitivas, a medidas que mantêm o aspecto concentrador, ao mesmo tempo em que busca colher as vantagens inclusive fiscais de se vender como agente cultural, ente iluminista, farol da civilização. Defende o que lhe for mais conveniente, sem contrapartidas.
Longe, muito longe, mas bem dentro aqui
Outro dado elementar: em 2019, uma pesquisa apontou que menos de 20% dos municípios brasileiros tinham livrarias. Livrarias – ponto. Nem grandes redes, nem livrarias menores. Nada. No máximo, uma papelaria que tem revistas e uma ou outra Bíblia.
E aí? Uma parte do lucro implícito na Lei do Preço Fixo vai ser usada para estimular a abertura de livrarias menores, “humanizadas”, nos outros mais de 80%?
No fundo, por mais que se aponte um ou outro exemplo – Casarin cita a Livraria da Praça, em Cássia (18 mil habitantes), e a Ufa Malufa, em Santo Antônio do Pinhal (7 mil) –, ainda me parece que a defesa desse modelo de livraria menor, de nicho, se aplica a grandes cidades, onde não falta acesso a livros, e não à maior parte do Brasil.
É a lógica do restaurante de nicho, não importando quão específico. Em São Paulo, por exemplo, há tanta gente, que se torna viável qualquer tipo de restaurante; em outras cidades, não. Cresci em Botucatu (150 mil habitantes), no interior de São Paulo, onde mal se sustentava um restaurante mexicano por vez, onde nenhuma livraria nunca esteve segura.
Enquanto isso, a Amazon chega ou quer chegar a todos esses lugares, até aos mais distantes. Investe em logística e capilaridade, porque não lhe falta dinheiro e sua meta é dominação mundial monopólio. Sua solução prejudica a todos que não ela mesma, mas ataca problemas palpáveis para todos os leitores: preço mais baixo possível; presença, ainda que digital.
Se for para a discussão girar em torno da saúde financeira das nossas livrarias preferidas, esses problemas podem ser ignorados. Mas não se o foco estiver na democratização do acesso ao livro (bibliotecas, políticas públicas de leitura e investimento em educação entram aí também, mas esse debate fica para outra ocasião).
Longe das capitais, onde talvez não seja viável uma livraria charmosinha, também tem muita gente que quer ler, encarando obstáculos concretos mas não intransponíveis – entre eles, o preço. Sua situação devia ser levada mais em conta, para não ficarem na mira do Lex Luthor da Amazon nem ao sabor da contemplação provinciana do mercado editorial brasileiro, contente no cercadinho de seus bairros cult. De um jeito ou de outro, no fim paga a conta quem mora lá onde o frete é altíssimo, independentemente de quem vende.