"Elementar, meu caro Winston": 1984 de Orwell é um romance policial
A obra-prima de George Orwell costuma ser lida como distopia, sátira ou sci-fi, mas por que não colocá-la na companhia de Sherlock Holmes?
1.
A ideia de ler 1984, de George Orwell, como um romance policial não tem nada de novo. Apareceu em 1949, logo após o lançamento do livro, numa resenha de William Soskin:
“A história de perseguição oficial tem todo o suspense e o melodrama de um super-romance policial, mas em vez de um exercício de perseguição ao criminoso nós nos deparamos com a perseguição sombria que paira acima da cabeça de todo homem moderno.” (“What Can Be”, The Saturday Review, grifo meu)
Costuma-se entender 1984 como uma distopia, a distopia – o livro fundamental do gênero, não o primeiro, mas seu sinônimo. Às vezes há variações, classificando 1984 como uma sátira como as de Jonathan Swift (Viagens de Gulliver), ou então como ficção científica, devido aos aparatos tecnológicos e ao exercício especulativo em relação ao futuro. O próprio William Soskin não leva muito a sério a ideia de ler 1984 como romance policial: essa hipótese vem negada pelo “mas”, aceita mas rebaixada, preterida.
Vamos investigá-la.
2.
Todo romance policial pressupõe um triângulo de personagens: a vítima, o criminoso e o investigador.
Essa estrutura vem de Edgar Allan Poe, com as histórias de Dupin (em especial A Carta Roubada); passa por Arthur Conan Doyle e seu Sherlock Holmes; ganha uma nitidez e uma previsibilidade britânica em Agatha Christie e seus detetives; transforma-se para continuar igual com o romance hardboiled de Dashiell Hammett e Raymond Chandler, tipo film noir; ganha ares paródicos e metalinguísticos na Argentina com Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, que Umberto Eco transformou em best-seller; e por aí vai. Até aqui no Brasil, autores como Luiz Alfredo García-Roza, Alberto Mussa e Samir Machado de Machado dialogaram cada um a seu modo com essa estrutura.
Já há quase duzentos anos, brinca-se com ela, ora fundindo as personagens, ora as dispersando. O formato mais tradicional apresenta a vítima logo no início, em geral assassinada. Depois introduz o investigador. Durante a narrativa, aparecem pistas e indícios que levam ao criminoso. Um whodunit, como se diz em inglês. Essa ordem pode ser mudada, mas estão sempre lá a vítima, o criminoso, o investigador.
George Orwell talvez não tivesse consciência da estrutura, mas estava familiarizado com o gênero. Basta ler o ensaio “Raffles e Miss Blandish” (1944), aqui publicado em O Que É Fascismo? e outros ensaios, no qual o escritor analisa uma transformação do romance policial inglês: de uma fase cavalheiresca, representada pelo criminoso Baffles (tipo Arsène Lupin), a uma brutalista e sádica, de que a personagem Miss Blandish seria uma vítima. O crime, seu fascínio e a reação do público estão no radar de preocupações de Orwell em 1944, meros cinco anos antes de ele concluir 1984.
3.
George Orwell era obcecado pela questão da verdade. A manipulação criminosa da mentira pelos stalinistas durante a Guerra Civil Espanhola acentuou sua preocupação. Combatente durante o conflito, Orwell testemunhou a traição a que foram submetidas as tropas anarquistas e trotskistas na Espanha por causa das manobras do Partido Comunista local, orientado por Moscou. Há vários pontos de partida possíveis para 1984, mas um deles está nesse trauma político.
Abra qualquer livro de Orwell e você esbarra nessa obsessão. O Ministério da Verdade, em 1984, é o responsável pela propaganda mentirosa do Partido. A capacidade das palavras de distorcer a verdade até ela se tornar irreconhecível aparece como tema central do ensaio “A política e a língua inglesa” (Como Morrem os Pobres e outros ensaios). Há muitas cartas que Orwell mandou a amigos, agentes e adversários, tentando retificar as informações falsas na imprensa inglesa sobre o papel dos comunistas na Guerra Civil Espanhola – ao custo, inclusive, da sua relação com editores. Em 1984, um dos sinais de que Winston Smith “quebrou”, vencido pela repressão psicológica, é sua aceitação de que a verdade não existe, ou melhor, existe em função do interesse do Partido: dois mais dois podem ser cinco, ou três, ou nada, se assim Ele quiser.
Seria estranho que Orwell usasse, mesmo inconscientemente, as ferramentas do romance policial? Afinal, esse tipo de história se baseia na tentativa de fazer a verdade emergir. Seja a factual, pela mão do investigador; seja a psicológica, na figura do criminoso; seja a afetiva, na falta que a vítima faz.
4.
Pode-se ver Winston Smith como qualquer um dos personagens convencionais do romance policial. Na verdade, sua posição varia conforme a história avança.
Na sua perspectiva, a que o leitor está colado desde o início, ele seria o investigador. Funcionário inexpressivo, Smith passa a desconfiar aos poucos de que alguma coisa está fora da ordem, e talvez o Partido esteja ligado a isso (seria um criminoso coletivo, sem rosto individual). Sua jornada no romance coincide com a progressiva descoberta da verdade a respeito da sociedade em que vive – tudo está de ponta-cabeça, a começar pelas palavras: GUERRA É PAZ, LIBERDADE É ESCRAVIDÃO, IGNORÂNCIA É FORÇA. O momento triunfante de Smith é em si uma descoberta da verdade: a leitura, junto com Julia, do livro de Emmanuel Goldstein. Ele dá a imagem exata das coisas como são; decifra o real, expõe a verdade.
Mas 1984 confronta o protagonista com outra perspectiva: a do Partido. Para ele, Smith só pode ser o criminoso. As dúvidas, as incertezas e por fim a heresia diante do Grande Irmão o encaixam perfeitamente no pensamento-crime, ou thoughtcrime, conforme a Novilíngua do romance. Jogo de pontos de vista: o que Smith vê como investigação, o Partido vê como a produção pelo criminoso de evidências contra si. Corda para Smith se enforcar. Só aí O’Brien vai torturá-lo no Ministério do Amor.
O final sombrio e pessimista de 1984 explicita que na verdade Winston Smith nunca passou de uma vítima. Mais uma entre milhões. Vítima do Partido, evidentemente. Mas, se fosse apenas isso, o livro seria trivial. A crueldade da situação de Smith está no modo como o Partido o força a ser vítima e algoz de si mesmo: posto no Quarto 101, torturado pela “pior coisa do mundo” (no seu caso, ratos), Smith implora que ponham sua amada Julia em seu lugar. Vítima e criminoso ao mesmo tempo. Alvo e agente da própria morte subjetiva. Smith enfim quebra, reduz-se ao molambo de pessoa no fecho do livro.
5.
“Sherlock Holmes é um amador, que resolveu seus casos sem ajuda e até mesmo, nas primeiras histórias, enfrentando a oposição da polícia. Além disso, como Lupin, ele é essencialmente um intelectual, até mesmo um cientista. Ele raciocina de maneira lógica a partir de fatos observados, e essa intelectualidade é contrastada todo o tempo com os métodos rotineiros da polícia. [Edgar] Wallace opôs-se fortemente a essa desfeita, assim ele considerava, à Scotland Yard, e em vários artigos de jornal ele desviou-se de seu rumo para denunciar nominalmente Holmes. Seu próprio ideal era o do inspetor detetive que captura criminosos não porque seja intelectualmente brilhante, mas porque é parte de uma organização todo-poderosa. Daí advém o fato curioso de que nas histórias mais características de Wallace a ‘pista’ e a ‘dedução’ não têm espaço. O criminoso sempre é derrotado por uma incrível coincidência, ou porque de algum modo inexplicável a polícia sabe tudo sobre o crime antecipadamente. (...) O público britânico tolera uma lei criminal rigorosa e se diverte com julgamentos de assassinato terrivelmente injustos: mas isso ainda é melhor, de qualquer maneira, do que tolerar ou admirar o crime. Se é para cultuar um valentão, é melhor ele ser um policial do que um gângster. Wallace em certa medida ainda é governado pelo conceito do ‘não se faz’; em No Orchids tudo ‘se faz’ conquanto que conduza ao poder. [James Hadley] Chase é um sintoma pior do que Wallace, no sentido de que uma luta de vale-tudo é pior do que o boxe, ou o fascismo é pior do que uma democracia capitalista.” (George Orwell. “Raffles e Miss Blandish”, 1944. O que é fascismo? e outros ensaios, Companhia das Letras, 2018, pp. 130-1. Grifos meus.)
6.
Soskin aproxima 1984 de romance policial, mas só vê nesse gênero – visão típica da época – “suspense” e “melodrama”. Emoções baratas, fáceis. Uma pena. O caso é bem o contrário: o romance policial pode ser uma engrenagem narrativa sobre a discussão da verdade, com todas as decorrências filosóficas disso. Ele trata, afinal, de uma investigação – embora não aquelas de Wittgenstein.
No caso de 1984, confrontam-se duas investigações: a de Smith e a do Partido. Sabemos qual se impõe. Nesse sentido, na queda de braço desigual e injusta do romance, O’Brien termina como o investigador. Triunfo da violência, da força pura, sobre a verdade e a razão?
Não exatamente, ou não apenas. Aí está a perversidade do livro, a crueldade de seu apelo estético, de obra bem-construída: O’Brien esmaga Winston por meio da força, mas também por meio da inteligência. Quer dizer: da inteligência assessorando a força. Lê-se durante uma das sessões de tortura:
“Ele não está fingindo, pensou Winston; não é um hipócrita; acredita em cada palavra do que diz. O que mais oprimia [Winston] era a consciência de sua inferioridade intelectual. Observava o vulto pesado e todavia gracioso andando de um lado a outro, entrando e saindo de seu campo de visão. O’Brien era, em todos os sentidos, um ser maior que ele. Não havia ideia que tivesse ocorrido a Winston, ou que pudesse vir a ocorrer um dia, que O’Brien não conhecesse havia muito e que já não tivesse examinado e descartado. Sua mente continha a de Winston.” (George Orwell, 1984, Companhia das Letras, 2009, pp. 299-300)
Aqui vemos algo que, entre outros aspectos, faz de 1984 uma obra-prima.
Não se trata apenas da separação entre força e razão, entre força e inteligência. Nesse caso, a razão e a inteligência se manteriam íntegras. Poderiam ser reativadas para se encontrar a verdade. Não: depois de separadas, razão e inteligência são recombinadas como justificativa da força. São corrompidas. Sua submissão ao Partido é total.
Assim diz o livro. Mas ele não faz só isso. Ele também se apropria do romance policial de modo surpreendente e poderoso, o que se pode deduzir desta imagem: “Sua mente continha a de Winston.”
Inconscientemente ou não, Orwell inverte aqui o sentido de uma cena tradicional dos romances policiais: a solução do crime.
Ela geralmente aparece no fim desses romances. Os suspeitos estão reunidos, a polícia está a postos ou a caminho. O investigador toma a palavra e apresenta a cadeia de eventos, motivos e circunstâncias que levaram ao crime. A verdade vem à tona, parida pela razão e amparada pela força da lei, resultando na justiça. Alinhamento ideal. É um momento de fascínio, no qual a inteligência do investigador desfaz os nós que o criminoso colocou no caminho. O público se maravilha com a engenhosidade do detetive, cujo domínio da razão pode parecer sobre-humano.
Orwell troca o sinal, transformando o fascínio em terror. Toda aquela inteligência, mas contra a perspectiva que seguimos. A serviço da tortura. Do esmagamento. Da violência direcionada ao mais íntimo da personagem, ao núcleo de sua dignidade. Da mais flagrante injustiça. Outro tipo de alinhamento para outro ideal – a concatenação se mantém, mas da mentira à injustiça.
Assim como os investigadores que o antecederam, O’Brien tem uma mente que parece conter a de seu adversário. Ironicamente, é um agente da ordem, que se restabelece ao fim deste romance. Igual às histórias policiais, mas com as inversões orwellianas: SOLUÇÃO É PROBLEMA; JUSTIÇA É INJUSTIÇA; FORÇA É INTELIGÊNCIA.
Elementar, meu caro Winston: romance (de um Estado) policial.
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Não é a primeira vez que falo de Orwell. Quem acompanha Freio de Mão sabe que o escritor é prata da casa. Na verdade, a estreia do meu blog foi sobre seu livro O que é fascismo? e outros ensaios, com texto citado aqui. Citei seus comentários sobre Kipling em outro texto. Mencionei-o, evidentemente, ao falar de fake news. Quando escrevia pro site da Época, dediquei uma coluna apenas a Orwell.
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